06 agosto 2017

a impotência

Era um conhecimento de Verão de há vários anos. Estava agora reformada como técnica de radiologia do Hospital de S. Maria. Quando, naquele mês de  Julho de 2010, ela e o marido me viram sozinho a caminhar na praia foi ela que me perguntou a razão. Eu expliquei. Em seguida, perguntou-me o estadiamento. Eu respondi. Ela olhou-me fixamente nos olhos, e disse:

-Olhe... leve-a a passear...

Os cinco anos cumpriam-se em Dezembro de 2014. As probabilidades eram de uma em três.

O quarto ano foi, de longe, o pior e coincidiu com o ano civil de 2013, aquele mesmo ano em que, já perto do final, eu viria pela primeira vez a fazer uma conferência numa igreja. E uma igreja - só agora posso notar a ironia - ali a dois passos de uma prisão cheia de simbolismo - aquela onde Camilo escreveu o Amor de Perdição. Diz-se que em quinze dias.

Os sinais desencadearam-se no início da Primavera, um atrás do outro, e continuaram pelo Verão fora. Os recursos da medicina estavam praticamente esgotados - a cirurgia, a quimioterapia  e a radioterapia estavam há muito para trás, e só a hormonoterapia estava ainda em curso.

Eu já tinha ido a Fátima. Meses depois voltei lá, desta vez de carro, para pedir a intercessão das irmãs Carmelitas Descalças.

Antes, tinha ido ver o Papa Bento XVI ao Centro Cultural de Belém. Era uma maneira de exprimir a minha admiração pelo grande teólogo e também - ainda que da assistência -, pedir a sua intervenção. No ano seguinte, fui mesmo à sua terra Natal na Baviera e ao Santuário de Altotting, uma cidade geminada com Fátima por óbvias razões. Também fui a Roma e ao Vaticano.

Mas, agora, começando na Primavera e culminando naquele Verão de 2013, gradualmente fui-me convencendo que não havia nada a fazer - os sinais não paravam de se agravar mesmo debaixo dos meus olhos - e que o inevitável estava para acontecer. Era uma questão de meses. E, um a um, transmiti a todos os membros próximos da família a minha mais negra previsão.

Foi nessa altura que, pela primeira vez, senti o que era a verdadeira impotência.

Já me tinha sentido impotente perante várias situações da vida, mas, cedo ou tarde, acabaria por lhes dar a volta. Os homens também falam de impotência sexual, mas para essa até já hoje existem remédios. E mesmo um homem normal, a quem ocorre um episódio de impotência num dia, no dia seguinte já é potente outra vez. Tudo impotências remediáveis e passageiras.

A verdadeira impotência era aquela que eu sentia agora. Era mais do que isso, porque vinha acompanhada de um sentimento de cobardia. O homem normalmente morre antes da mulher. Agora, a realidade apresentava-se ao contrário e eu já não conseguia encontrar uma solução - uma única que fosse - que a virasse direito.

Era a impotência total, definitiva e absoluta. Era a impotência perante a morte.

A tal ponto que um filho meu, que é medico, chegou a confidenciar a uma amiga de família, que estava mais preocupado com o pai do que com a mãe.

Um dia, entrou-me em casa com dois medicamentos, que me disse para tomar, a posologia escrita à mão nas embalagens. Aceitei graciosamente, compreendia a intenção. Quando ele saiu, guardei-os na gaveta da minha secretária.

Meses depois dei-me conta que a filha dele, então com dois anos, cada vez que vinha a minha casa, a primeira coisa que fazia era abrir-me a gaveta da secretária. Era um risco ter ali duas caixas de medicamentos à mão de crianças. Um dia, discretamente, deitei-as fora, sem nunca as ter aberto.

Suponho que eram anti-depressivos.

Sem comentários: