31 agosto 2011

liberal

Existe uma grande diferença entre o liberalismo e o catolicismo? Não, não existe. São muito mais as semelhanças entre estas duas doutrinas do que aquilo que as separa, assim da ordem de 90% de semelhanças e 10% de diferenças. A doutrina liberal é filha da doutrina católica.

Ao mesmo tempo que decorria a Reforma Protestante - cujas duas características essenciais foram a contestação da autoridade do Papa e a rejeição da tradição - um novo movimento paralelo surgia na filosofia, que até aí tinha sido dominada pelo pensamento católico (Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, etc.).

Descartes foi muito justamente considerado o primeiro filósofo moderno. A sua démarche intelectual consistiu em procurar dar resposta ao problema que o protestantismo tinha pela frente. E envolvia os dois pontos seguintes. Primeiro, fazer tábula rasa do passado - a rejeição da tradição. Mas tendo rejeitado as formas de viver do passado, que estavam assentes na doutrina católica, havia que criar um novo futuro. E como é que esse futuro iria ser criado? Através do segundo pilar da filosofia cartesiana: não acreditando em nada que não pudesse ser demonstrado pela razão. O novo mundo que o protestantismo iria erigir seria criado totalmente à revelia do passado e seria criado pelo poder exclusivo do intelecto.

Descartes era católico, mas a Igreja não achou graça à sua filosofia, como era de esperar. Rejeitar o passado era rejeitar a tradição de que a Igreja era a guardiã; enfatizar o poder do intelecto (razão) não era nada de novo para a Igreja (S. Tomás de Aquino). Mas não ao ponto de o tornar a fonte exclusiva da Verdade. Na altura, a filosofia da Igreja era muito mais influenciada por Santo Agostinho, que enfatizava o coração (amor) como a principal fonte da Verdade.

Quem experimentar replicar a empresa de Descartes verá facilmente que se trata de uma empresa impossível. Essa empresa consite em começar uma vida inteiramente nova e exclusivamente racional, deitando radicalmente fora o passado. É caso para perguntar: tendo esquecido o passado, onde é que ele vai buscar as ideias que lhe permitem começar a vida inteiramente de novo? Só se cairem do céu.

É claro que não cairam do ceú. Aquilo que Descartes - e os outros filósofos modernos - fizeram foi irem buscar as ideias ao único conjunto articulado de ideias que existia e o único que eles conheciam - a doutrina católica. O protestantismo, nas suas múltiplas versões, e a filosofia moderna que lhe deu seguimento em forma laica, tem como matriz o catolicismo. É por isso que o liberalismo, uma ideologia laica herdada do protestantismo britânico, é filho do catolicismo.

Tome-se a doutrina católica em versão laica, isto é, expurgando-a da sua componente teológica e portanto de Deus, a fim de a tornar comparável com o liberalismo. Retire-se um ou outro elemento à doutrina católica e modifique-se ou exagere-se outro. Depois de feito isto, tem o liberalismo.

O principal elemento que o liberalismo retira à doutrina católica é o da autoridade pessoalizada, suprema e absoluta, correspondendo na teologia à rejeição do Papa. O principal elemento que o liberalismo modifica no catolicismo é o equilíbrio entre a prossecução do interesse individual e a prossecução do interesse comunitário, desequilibrando-o em benefício do primeiro.

Excepto para estas duas modificações, o liberalismo não é uma invenção britânica de David Hume, Adam Smith ou Adam Ferguson, como os britânicos tanto gostam de dizer (se reparar, os britânicos acabam sempre a dizer que são os inventores de tudo aquilo que de bom Deus pôs no mundo). Na melhor das hipoteses, esta pode chamar-se uma versão moderna do liberalismo. O liberalismo já existia antes de o protestantismo filosófico britânico lhe introduzir estas modificações. Existia no catolicismo.

Qual deles é o verdadeiro liberalismo, o tradicional (católico) ou, pelo contrário, o novo (protestante-anglo-saxónico)?

Eu vou agora dizer uma coisa que nunca me recordo de ter dito na minha vida, em privado, e muito menos em público, se bem que me tenham chamado isso muitas vezes em versão mega, mas tal nunca me importou, porque eu, genericamente, não acredito no julgamento dos portugueses, certamente que não do povo.

Aquilo que eu tenho para dizer, a novidade - se é que tem algum interesse, excepto para mim - é o seguinte. Eu sou um liberal. Aquilo que eu deixei de ser foi um liberal na versão nova ou protestante para passar a ser um liberal na versão tradicional ou católica. Obviamente, isto não tem nada de original. Tocqueville e Lord Acton, os tais que Hayek considerava serem os dois maiores liberais modernos - e aqueles cujos nomes foram vetados para darem o nome à Mont Pelerin Society (cf. aqui) - eram ambos católicos.

E, em Portugal, não há exemplos destes? Claro que há. Em Portugal, fazendo justiça à sua cultura católica, há de tudo. Era melhor que nós não tivéssemos o nosso Tocqueville ou Lord Acton. Alexandre Herculano é, em Portugal, a grande figura liberal que, tendo embora começado como um liberal em versão protestante ou anglo-saxónica, acabou como um liberal católico.

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