28 novembro 2006

brilhante



Não sei se conhecem, mas vale a pena. Eu não conhecia e confesso-me deslumbrado. Chama-se Bic Runga, já canta desde 1995 e é da Nova Zelândia. Escutem aqui.

21 novembro 2006

último «post»

Eu sei por experiência própria e por evidência alheia que nunca se deve ser definitivo em quase nada. Porém, arriscaria dizer que este «post» sobre o aborto e o referendo actual em curso terá sido o último que escrevi sobre o tema antes do próximo referendo. Efectivamente, penso que já disse tudo o que tinha a dizer, já defini claramente a minha posição, e doravante só poderia repetir-me. Não quero, também, em relação a um problema real que infelizmente afecta tantas pessoas, fazer jogos de retórica argumentativa e de especulação filosófica ou jurídica inteiramente desprendidos da realidade, como, de facto, involuntariamente já terei feito, e a insistência só poderia agravar. O assunto é demasiado sério e grave, afecta muitos milhares de pessoas, sobretudo mulheres jovens e adultas, e merece, assim, ser visto com especial delicadeza, em vez do tratamento político e publicitário que tem tido. Bem melhor seria que não tivesse sido necessário trazer o assunto a público. Era sinal de que estaria no domínio devido, o da intimidade pessoal e da consciência individual. Infelizmente, não foi nem será. Por mim chega e quem tiver algum interesse em ler o que escrevi, por pura curiosidade ou para utilização, poderá fazê-lo aqui, ou de forma mais sistematizada aqui.

dez semanas

Caro Pedro,

Permita-me que lhe diga que me parece que o seu «post» assenta num equívoco: a barreira das dez semanas já lá está, já existe, foi imposta pelo legislador português, isto é, pelo Estado, na lei actualmente em vigor. O referendo não a vai inventar e, como sabe, em certas situações, até às dez semanas, o aborto é consentido em Portugal. Ora, do ponto de vista de quem quer manter a sanção penal para o crime utilizando a vida humana do embrião como argumento, entende-se com dificuldade a aceitação das três excepções legais em vigor. Lembro-lhe, de resto, que quando elas foram introduzidas na lei actual tiveram, também, a oposição activa dos mesmos sectores que hoje se opõem à despenalização fora das situações que outrora contestavam. Diga-se, em abono da verdade, então, com muito mais coerência do que hoje.###
Também não parece exacto que a nossa tradição cristã vá unanimemente no sentido de considerar a existência de vida, pelo menos de vida com «animus», com alma, desde o momento da concepção. Há uma corrente na Igreja Católica, que ainda há bem pouco tempo se manifestava, em favor da tese da «hominização tardia». S. Agostinho seguiu-a e comparava o feto não formado «às folhas que não tinham frutificado». S. Tomás afirmava que a «alma» incorporava muito depois da concepção, quando o feto tivesse já adquirido forma humana completa, isto é, depois das referidas dez semanas de gravidez. Numa das compilações do Corpus Iuris Canonici, em vigor até 1917, no Decretum de Graciano (1140) podia ler-se que «o aborto só é homicídio quando o feto está formado». Poder-se-á alegar, como alguns católicos têm feito acesamente, que naqueles tempos não havia ciência suficiente para se saber o que hoje se sabe sobre a vida intra-uterina. Mas não duvide, caro Pedro, que tanto S. Agostinho, como Graciano, como S. Tomás, sabiam bem o que era a concepção e também não ignoravam que desde esse momento existe vida. Só que, para eles, vida sem alma, coisa esta que nem mesmo a ciência de hoje poderá comprovar. Mais recentemente, já no século XX, outros homens da Igreja Católica têm-se mantido seguidores dessa tese. O Padre Karl Rahner, jesuíta (sempre os jesuítas, meu caro!) e teólogo, escreveu em 1962 que: «Nenhum teólogo pode pretender provar que a interrupção de uma gravidez, ou seja a realização do aborto, seria em toda e qualquer circunstância o assassinato de um ser humano». O Padre Joseph Donceel, ele também teólogo de século XX e um tomista confesso, retoma a teoria da «hominização retardada ou tardia», dizendo mesmo que «o embrião não é desde logo uma pessoa humana nas primeiras semanas de gravidez».

Não o querendo maçar mais, e tendo para mim como assente que o que se vai referendar é a lei estatal que está em vigor e, especialmente, a pena de prisão que ela determina para quem aborte dentro do prazo legal imposto (as tais dez semanas), atrevo-me a propor-lhe o exercício seguinte. Se lhe fosse possível escolher, o que é que preferia: a lei actual; a lei actual sem sanção penal; ou lei nenhuma? Por mim, como liberal, não teria nenhuma dúvida em responder a terceira hipótese. Na impossibilidade de o fazer, dada a legislação em vigor do Estado português, optarei pela segunda.

dividir é preciso

O meu amigo Pedro Arroja dizia num comentário a um «post» editado nesta última semana, e que, pela abundância, já não consigo encontrar, que o tema do aborto não devia ser discutido publicamente, porque dividia as pessoas em vez de as juntar. Eu compreendo o que ele diz, mas não posso concordar. Porque, muito francamente, parece-me mais do que necessário de o liberalismo se demarque, de vez, de uma direita que nunca o estimou e que sempre se afastou dele quando esteve no poder. Que o vem fazendo pelo menos há duzentos anos, sendo essa, em minha opinião, uma das principais razões que explica o fracasso permanente do liberalismo português e, já agora, passe a imodéstia, da própria direita quando está a governar o Estado.
Numa altura em que a direita está na oposição e em que, curiosamente, as ideias liberais começam a parecer querer ganhar espaço próprio, o pior que lhes podia suceder era serem novamente confundidas. Confundidas com uma direita que, quando chega ao poder, recusa autorizar a educação sexual nas escolas, por escrúpulo supostamente religioso (a educação sexual que, agora, é «tão necessária» para evitar o flagelo do aborto...). Confundidas com uma direita que, quando chega ao poder, faz notar que Portugal não é a Califórnia. Confundidas com uma direita que, quando chega ao poder, prefere o discurso da intervenção social ao da emancipação liberal. Confundidas com uma direita que, quando chega ao poder, aumenta os impostos em vez de os baixar, ao contrário do que prometera em campanha. Confundidas com uma direita que, quando chega ao poder, faz questão de expressamente dizer que não é liberal.
Não, meu caro Pedro Arroja. Por mim, não só acho útil, como absolutamente necessária, esta higiénica separação de águas. Para que as liberdades que, na oposição, todos dizemos defender, não se transformem em «impraticabilidades de Estado», quando nele se instala a direita. Porque, gestão por gestão, a mim, tanto me faz que seja o Eng. José Sócrates a gerir o Estado, como os Drs. Barroso e Lopes. Se calhar, como você, até sou capaz de preferir o primeiro. Pelo menos, não fico com a sensação de ter sido enganado.

laissez-faire, laissez-passer




Cara Mafalda,

Claro que o homem vive necessariamente em comunidade, por via da qual cresce e se potencia, na qual desenvolve laços, cria relações, estabelece instituições, coopera, litiga e, na medida do possível, harmoniza com o(s) outro(s) a sua existência, tendo em vista uma vida feliz e um destino melhor para si e para os seus filhos. O que de essencial nos separa, ao que julgo ter percebido do muito que escreveu no seu último «post» (escolheu-lhe bem o título, já que a lenta compreensão é uma das minhas públicas características pessoais), é que enquanto a Mafalda concebe a liberdade individual como algo «apenas pensável na abertura de pontes comunicantes com o outro», eu vejo-a como o fundamento primeiro sobre o qual se pode erguer, e sem o qual nunca se poderá erguer, uma comunidade humana. Isto é, se, para a Mafalda, a liberdade está a jusante, para mim ela encontra-se a montante. Por outras palavras: só homens livres formam uma sociedade livre; não é esta que lhes concede o direito à liberdade.

O que nos remete para o problema da ordem social. Pergunta a Mafalda onde vou eu buscar essa ordem que brota espontaneamente? Aqui, não responderei por mim, mas usarei também as palavras de outros Mestres: «Laissez faire, laissez passer», minha cara. Se não se satisfizer com esta máxima tão vulgarizada e tantas vezes criticada, permita-me, então, a ousadia de a remeter para a filosofia política de Hayek e da análise que ele fez da «Grande Sociedade» e dos processos de formação das suas instituições sociais, políticas e jurídicas. Não tendo a pretensão de sintetizar em poucas palavras o que ele tratou ao longo de muitos anos em milhares de páginas, sempre lhe direi que as instituições de uma sociedade livre fundam-se na experiência, na selecção natural dos melhores procedimentos sociais, na exclusão dos mais inconvenientes encontrados pelo erro, na verificação prática da sua utilidade. Estas instituições vão-se sedimentando com o tempo, transmitindo pela tradição, e positivando pela força do costume e da sua aceitação pelos tribunais e pelo próprio legislador. Este direito, que colhe na experiência, no costume e na tradição, não é, de facto, o direito de inspiração romano-justinianeia que desde há muito impera na Europa continental. Mas poderá certamente encontrar ainda vestígios fortes da sua existência no direito inglês e na generalidade dos sistemas jurídicos de influência anglo-saxónica.

Ainda assim, penso que não duvidará que toda a história do medievalismo jurídico europeu continental foi, desde aí e até ao iluminismo, a do conflito entre o direito consuetudinário local secular e o direito positivado pela lei centralizadora de inspiração justinianeia, E que muitas vezes os próprios monarcas tiveram que cercear os seus ímpetos de concentração de poder aceitando o costume local, quando não fazendo dele a própria lei. Sabe, seguramente, que as nossas três Ordenações admitiram o costume contra legem, assim ele cumprisse 40 anos de antiguidade e tivesse sido fundamento de, pelo menos, duas sentenças judiciais. E que este regime de concorrência entre diferentes fontes de direito só teve fim com a reforma pombalina de 1769, a que se deu o nome ignaro de Lei da Boa Razão. 1769, coisa recente, portanto. É que o paradigma da lei eticamente valorada, logo, absoluta, ou por outra, valorada eticamente pela autoridade do legislador, nem é de sempre muito menos de todos os lugares, cara Mafalda. A ideia de que a lei é a expressão da vontade do imperador, mais tarde do monarca e, por fim, do poder político sufragado é, do ponto de vista liberal, uma corrupção do próprio direito. Pelo menos, do direito de uma sociedade livre.

Para a Mafalda «o direito resolve problemas práticos a vários níveis. Ao fazê-lo faz escolhas.» Sem dúvida. Em sua opinião, o legislador deverá fazer muitas ou poucas escolhas? Deverá retirar a «liberdade para escolher» (a minha homenagem a Milton Friedmnan) aos cidadãos ou respeitá-la? E, pergunto-lhe: quem estabelece as normas jurídicas? Responderá, certamente, «o legislador». E fundado em quê, insisto? Dir-me-á «na ética». Então, eu pergunto-lhe, onde estava a ética do Nacional-Socialismo e das suas leis raciais? Ou a ética do Comunismo e das suas leis que proibiam a religião e a propriedade? Ou a ética das nacionalizações no pós-25 de Abril. Ou, para não irmos a exemplos extremos, a ética do direito vigente em Portugal que nos condena a entregar ao Estado mais de metade do produto do nosso trabalho, a troco de uma justiça social redistributiva que não vemos em lado nenhum? É que, cara Mafalda, o legislador tem sempre uma ética que invoca em seu favor. Infelizmente, nem sempre a ética dessa ética é muito ética. A ética nazi, a ética comunista, a ética colectivista fundam-se em valores que aqueles que os defendiam e defendem entendem acima de toda a refutação. O Estado de Direito Social, note bem, de Direito Social, tem uma ética. Então não tem!? A ética de proteger os pobrezinhos, redistribuindo rendimentos. A Mafalda vai nessa? Não acredito.

É por isto, cara Mafalda, que nós, os liberais, não confundimos Estado com ética, direito com ética, política com ética. A política, o Estado e o direito têm o seu domínio natural, que não deve ser o de fazer escolhas pelos indivíduos que estes mesmos possam fazer, menos ainda, fundando essas escolhas numa ética cuja dimensão «metajurídica» começa e termina na cabeça do legislador. Como dizia Popper, nada ou ninguém nos pode garantir os talentos, a boa vontade, a honestidade, isto é, a ética de quem maneja o poder público. Mesmo que esta última fosse possível de assegurar, poderia não ser suficiente. Ou será que duvida que Chamberlain teve um comportamento ético na forma como lidou com Hitler? E que, se calhar, Churchill terá sido menos ético nos seus procedimentos em relação ao ditador alemão? A qual dos dois dá, hoje, razão? É por isto também que, para nós liberais, esse poder soberano ? no fim de contas, o de alguém decidir pelos outros - deve ser mínimo, tão mínimo quanto o possível. Conhecendo os homens e desconfiando deles quando lhes é concedido ascender ao sublime patamar do poder, os liberais entendem ainda hoje, como Locke no passado, que o governo deve reduzir-se às mínimas instituições que assegurem a sua segurança, a sua propriedade, isto é, a liberdade.

Não quero terminar sem a felicitar. Porque, ao repto que lhe lancei sobre se participaria às autoridades um eventual crime de aborto de que tivesse conhecimento directo, respondeu que decidiria «unicamente, ao nível da minha consciência». Está, assim, a afastar a aplicação objectiva da lei que pune uma mulher que abortou com pena de prisão, para decidir por si, pelos seus critérios, com a sua consciência e no pleno uso do seu individualismo. Uma atitude liberal, em suma. Parabéns.

Com os melhores cumprimentos,

Rui de Albuquerque

P.S.: Espero que, desta vez, as gravuras que ilustram o «post» não mereçam o seu reparo. A mim, como sou liberal, dão-me sempre algum prazer. E muito feliz ficaria se, um dia, contribuissem também para reforçar os seus argumentos.

correspondência em dia

Cara Mafalda,

Muito antes do Estado existir e aplicar a lei penal aos casos que refere no seu «post» - «não matar o vizinho, o pai, a mãe ou um desconhecido», já as sociedades humanas conheciam essas regras de direito, normalmente, por via consuetudinária, e as acautelavam em tribunais próprios. De resto, nunca as sociedades humanas, mesmo as mais primitivas, tiveram grandes hesitações em proibir o homicídio e em condenar quem o cometesse, em regra, a uma pena da mesma medida do acto ilícito. Isso significa, do ponto de vista liberal, que penso me consentirá manter, que existem regras de vida em sociedade que, nas sociedades livres, os homens vão burilando e sedimentando com o tempo, e que acabam por se transformar em normas jurídicas, deixando de ser assim simples normas sociais. Habitualmente, sobre essas normas existe um consenso generalizado e poucos são os que as questionam. Do ponto de vista liberal, o direito legislado deve ser o reflexo desta ordem jurídica quase espontânea, sendo que os restantes domínios da vida em sociedade devem ser deixados à livre expressão contratual dos directos interessados, isto é, os indivíduos.

Não vejo nisto, muito francamente, qualquer ideia de «individualismo dessolidário», expressão que é sua, a não ser que por isso queira dizer que os estadistas, essa espécie de seres alados e iluminados, sucessivamente, por Deus, pela Razão e pela Democracia, conseguem avaliar melhor e representar mais capazmente os interesses, os anseios e as expectativas dos indivíduos do que eles próprios. A não ser, também, que ache que uma sociedade humana é um agregado transpessoal com alma e vontade próprias. E que, por conseguinte, o direito deva espelhar essa super-estrutura transpersonalista e supra-individual. Nestas hipóteses estaremos, na verdade, em dessintonia profunda: para mim, o direito legislado pelo Estado deve contemplar as regras essenciais da convivência humana e o resto deve ser deixado à liberdade contratual. Logo, não valerá a pena continuarmos por aqui.

Regressando ao problema do aborto, ele não é nas sociedades humanas, desde há muito, um assunto sobre o qual exista uniformidade de pensamento ou de sentimentos, ou, sequer, uma corrente maioritariamente dominante. A própria Igreja Católica teve dúvidas acerca da existência de «animus», isto é, de alma, no embrião até ele se transformar em feto. S. Tomás de Aquino considerava que isso só ocorria na segunda fase e, mesmo assim, muito tardiamente. Dir-me-á, evidentemente, que nessa altura a Ciência não tinha ainda os meios de que hoje dispõe para demonstrar que existe vida humana desde o primeiro momento da concepção. Mas, minha cara Mafalda, não ignorará que S. Tomás e os do seu tempo sabiam bem o que era a concepção e não desconheciam que sem ela o nascimento de um ser humano seria sempre impossível. Note, de resto, que S. Tomás falava em alma e não propriamente em vida.

Como vê, não serei o único com hesitações e com «nins» nesta matéria. Porém, há uma coisa sobre a qual me sinto seguríssimo: que uma rapariga ou mulher que aborta, ainda que o faça impensadamente (o que não acredito), não deve ser levada à justiça dos homens, nem condenada às penas que o actual Código prevê. Não insistirei em fundamentar esta convicção, pedindo-lhe a maçada de ler os meus «posts» anteriores caso tenha interesse em conhecê-la. Contudo, permita-me que lhe faça também eu um desafio: a Mafalda conhecerá, certamente, algumas raparigas e mulheres que abortaram fora das situações previstas no Código Penal em vigor. Presumo mesmo que participará em associações que se dediquem a ajudá-las a evitar que o façam. Já lhe passou alguma vez pela cabeça, cara Mafalda, denunciar os seus «crimes» às autoridades competentes, para que elas possam ser punidas, tal e qual determina a lei penal que a Mafalda quer manter? Não vai responder-me, peço-lhe encarecidamente, que essa missão de «investigação» compete ao Estado e aos seus órgãos de polícia criminal. Sabe bem que essa não é a resposta que poderá dar-me. Eu digo-lhe porque nunca o fez: porque não estaria certo fazê-lo, e a Mafalda e a sua consciência sabem disso.

É isto e isto apenas, que para mim está em causa. Como é evidente, não pretendo que o SNS, serviço público sustentado pelos contribuintes para assistir na doença quem deles precisa, sirva para resolver problemas pessoais que nada têm que ver com a saúde de quem os tem. É aí, cara Mafalda, que devemos fazer apelo à responsabilidade individual, para que cada pessoa tenha bem ciente a dimensão dos seus actos, e não facilitá-los a um ponto em que eles se tornem gratuitos e que sejamos todos nós a sustentá-los, contribuindo, aí sim, para a desresponsabilização individual, com a qual nenhum liberal se sentirá confortável. Não se trata, como vê, de uma linear hesitação económica, mas verdadeiramente de uma questão de ordem moral.

Penso, por último, que a questão do «apriorismo axiológico» na actividade do julgador que referiu no seu «post», está já em cima respondida: a Mafalda parte de um pressuposto errado sobre o que penso, culpa minha certamente, e, por isso, não pode tirar conclusões acertadas. De todo o modo, sintetizo: numa ideia liberal do Direito, o juiz é um intermediário entre o sentimento comum da comunidade e os destinatários do seu poder, ou, então, limita-se a fazer respeitar os vínculos contratuais livremente assumidos pelas partes. O Direito tem que visar a justiça e não propriamente a ética. Aliás, quase sempre que o legislador fundamenta os seus actos normativos na ética, invariavelmente na sua ética, é porque pretende extrapolar os limites mais do que razoáveis do seu poder, quando não instaurar tiranias.
Ora veja lá se isto tem aplicação no seu modelo jurídico-penal a respeito do aborto.

Cordiais cumprimentos,

Rui de Albuquerque

uma questão difícil

O modo como foi redigida a pergunta do referendo do aborto («Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?») leva a acreditar que os hospitais públicos deverão passar a atender obrigatoriamente as mulheres que queiram abortar fora das situações em que esteja em causa a saúde física ou psicológica da mãe ou do feto.
Esta é uma objecção séria que um liberal defensor da despenalização deve ponderar na sua tomada de decisão.
Porque se eu estou inegavelmente contra a criminalização/penalização de quem aborta, já não sou a favor de que sejam o Estado e os contribuintes que sustentam o Serviço Nacional de Saúde, entre os quais estão certamente muitas pessoas que são contra a despenalização, a suportar os custos e a responsabilidade social dessa prática.###
Em primeiro lugar, porque se o que se pretende evitar é o chamado «aborto de vão de escada», ele só existe porque se trata de um acto ilícito. Se feito por uma clínica ou num consultório particular não é, em qualquer país onde a prática é autorizada, um acto médico caro nem inacessível. Por isso, se descriminalizado, o mercado tratará de fazer desaparecer as abortadeiras de vão de escada. Não é necessário ser o Estado a fazê-lo.
Em segundo lugar, porque uma gravidez não é um problema de saúde, mas de consciência. E, quando comprovadamente o é, a actual lei já permite que se recorra ao SNS para resolver a questão.
Em terceiro lugar, porque a responsabilidade de assumir ou interromper uma gravidez é e terá sempre de ser pessoal. Trata-se de uma decisão que não pode ser partilhada, menos ainda imposta a terceiros ou à comunidade onde se vive. Aqui, de facto, tem lugar a responsabilidade individual de quem engravida e pretende abortar, responsabilidade que não pode ser partilhada ou diluída na comunidade.
Por último, o SNS deve, no limite, tratar de problemas de saúde e não de problemas de consciência individual.
Esta é, assim, uma séria dificuldade para que um liberal possa, em consciência, decidir. O que passou a estar em causa, desde a aprovação da pergunta do referendo, é isto: devemos privilegiar a actual situação legal, mesmo admitindo a possibilidade de uma mulher que aborta ser julgada e condenada por isso, ou devemos preferir um sistema despenalizador no qual todos comparticiparemos e pagamos? Uma questão difícil, para a qual seria bom que os «militantes» de ambos os lados começassem a tentar encontrar respostas convincentes.

julgar

Aplicar justiça implica, como o léxico especializado evidencia, julgar alguém. Ora, entre seres humanos que se presumem essencialmente iguais na sua natureza e, por isso, na sua dignidade, um julgamento é um juízo de valor feito por um (ou mais) homem sobre o comportamento de outro. Convém, assim que esse julgamento seja feito por quem tem autoridade moral para o fazer e tenha um resultado final que o comum das pessoas reconheça como justo. É por isso que, do ponto de vista liberal, as regras do direito, sobretudo do direito estatal, devem ser tão reduzidas quanto o possível, e circunscreverem-se àquilo que é essencial para garantir a convivência humana em sociedade, em vez de contribuirem para agravar os já muitos factores de desagregação. O Estado português, à semelhança dos outros Estados contemporâneos, legisla demais, julga demais e interfere demais na vida privada dos indivíduos. Com uma reduzidíssima autoridade moral em grande parte dos casos, diga-se de passagem. Como bem argumentam os defensores do «não» ao aborto, ao dizerem que, nessa matéria, «o Estado se demitiu das suas incumbências.»

as(sim) não

A resposta veio como era de esperar. Depois de algumas insinuações pessoais, técnica habitual de quem não tem nada de substancial para dizer, o resto é há muito conhecido: associações de apoio às grávidas em risco e a mães solteiras; planeamento familiar; educação sexual; adopção mais flexível; exigir que o Estado não se «demita» (?) das suas responsabilidades nesta matéria. Por último, o argumento final que confessa a impotência: não compete aos defensores do «não» resolver o problema.
Perdoem-me o pleonasmo: pois não. Como não resolveram nos últimos oito anos, após a vitória do «não» no referendo e a manutenção da lei em vigor. A questão é mesmo essa: não resolveram, não resolvem e não resolverão coisa nenhuma, por razões que em muito ultrapassam esta discussão e, sobretudo, os termos completamente distanciados da realidade em que, mais uma vez, ela tem vindo a decorrer. Não entender isto e permanecer na animação de um debate pungente, estéril e com um intragável sabor a déjà vu é que é, a todos os títulos, lamentável.

e porque «não»?

Tenho seguido com alguma atenção o que têm dito e escrito os defensores do «não» à despenalização do aborto, especialmente no militante «Blogue do Não».
Confesso que os argumentos utilizados, no essencial os que invalidam as razões do «sim», já os percebi há muito tempo. Pelo menos, desde 1998, quando no referendo anterior votei «não». Penso, até, que muito antes disso já tinha compreendido que uma mulher que se vê forçada a abortar tem necessariamente a sua liberdade diminuída e que, na verdade, impede o nascimento de um potencial ser humano.
O que continuo sem ouvir são as tais propostas para ajudar essas mulheres em situação limite. As ideias e propostas para que a dita tutela do embrião pelo Estado não seja apenas o grotesco espectáculo de um ou dois julgamentos anuais na praça pública. As ideias e propostas para fazer com que diminua efectivamente o número das mulheres que todos os anos, ou todos os dias, abortam. Em suma, as tais ideias e propostas para «ajudar» essas mulheres.
Porque se a ideia é, como nos últimos anos, manter a ameaça da tutela penal, não vejo, muito francamente, que isso possa reforçar a liberdade de opção dessas mulheres ou ajudá-las seja no que for. Como, também, não me parece que tal ameaça contribua minimamente para que elas deixem de abortar. Porque, e nisto estaremos certamente todos de acordo, caso contrário não se entenderia tanto empenho, é o que mais tem sucedido nos últimos anos. Também nestes últimos oito anos, desde que o «não» venceu o primeiro referendo.
Em minha opinião, conviria aos defensores do «não» que começassem por aqui, em vez de continuarem a repetir à exaustão o que já todos sabemos. Para que, daqui por oito anos, ganhe o «sim», ganhe o «não», as coisas sejam diferentes do que foram nestes últimos oito, e que tudo isto não se baste numa acirrada disputa argumentativa e eleitoral de ocasião.

tolerância

A tolerância é um valor humano e social que o liberalismo - e não só o liberalismo, reconheça-se, desde sempre teve por fundamental e intransponível. Tolerância política, tolerância sexual, tolerância religiosa. Tolerância como princípio geral de convivência social, pelo qual um indivíduo tem direito a ter as suas convicções, a praticá-las e a defendê-las privada ou publicamente, no evidente respeito por idêntico direito absoluto dos outros.
Um mundo onde uma convicção ou uma crença se impusessem de forma total, seria um mundo asfixiante e totalitário, como infelizmente sucede ou sucedeu em muitas sociedades humanas. Um mundo monocromático, a preto e branco, de inimizade e conflitualidade geral, onde seria insuportável viver.

uma questão de fé

A revista Época desta semana contém um interessante dossier sobre ateus e crentes, tendo como ponto de partida a recente publicação do último livro do norte-americano Daniel Dennett, Breaking the Spell, autor conhecido pelas suas posições fortemente críticas da religião.
No limite, a polémica continua a oscilar nos mesmos parâmetros de sempre: para os ateus a ciência já quase consegue provar a inexistência de Deus, pese embora ainda esse «pequeno quase» que continua a falhar; enquanto que os crentes persistem em dizer que a ciência e Deus são não só conciliáveis, como inexplicáveis um sem o outro. Na verdade, não obstante o estado relativamente evoluído das investigações sobre a origem do cosmos, antes e no momento do big bang, falta ainda responder concludentemente sobre o que existia antes desse momento e porque razão ele teve lugar. Falta, igualmente, explicar a forma como a vida se criou e, mais importante do que isso, se a sua evolução, eventualmente inteligível pela ciência, foi acidental ou intencional. Como, também, os crentes não conseguem demonstrar a existência de Deus, pelo menos, não conseguem apresentar evidências da sua existência, que a ciência possa validar como provas nos termos metodológicos geralmente aceites.
Numa palavra, acreditar em Deus ou na sua inexistência continua a ser, como sempre foi, uma questão de fé.

13 novembro 2006

bicões


Então, o que é um «bicão»? Em Portugal talvez uma forma simpática de designar um passaroco qualquer. No Brasil é o nome pelo qual os «penetras» são conhecidos.
O fenómeno tem enorme dimensão em São Paulo, ao ponto da Veja São Paulo lhe ter dado destaque de capa na edição desta semana. As coisas passam-se assim: existem, todas as noites, na capital paulista dezenas de festas, e há, todas as noites, dezenas de penetras profissionais não convidados que as tentam invadir. As técnicas vão da simulação de convites, à entrada no meio de empregados e músicos (técnica do «cavalo de Tróia»), até à falsa declaração de identidade, sendo as de jornalista e de político as mais utilizadas. Uma vez detectados, há reacções para todos os gostos: os mais sóbrios saem sem resistência, enquanto que os mais audazes recorrem ao clássico «você sabe com quem está a falar?» (técnica «peito de pombo») e fazem um chinfrim tal que a melhor opção é deixá-los sossegados. Os objectivos também variam: comer e beber do bom e do melhor (há festas que custam para cima de 1 200 reais por convidado), estar com famosos ou saciar um instinto de pura e simples penetrice. Também existem nichos de mercado e especializações. Marcus Martinez, um vendedor de colchões,### especializou-se na São Paulo Fashion Week, à qual só se acede por convite especialíssimo. Martinez já assistiu aos desfiles na primeira fila, lugares reservados e muito procurados. Adriana B. prefere os casamentos onde gosta de ir dançar com o namorado de ocasião. Peito de Pombo (nome desconhecido) privilegia ambientes culturais, exposições e vernissages. Se convidado a sair faz barulho e pode até demandar judicialmente os organizadores da festa, por ofensas e danos morais. Há já indemnizações pagas que chegaram a 5 000 reais, fazendo da actividade um bom negócio. Mas o rei consagrado é, sem dúvida, Waldo Barreto Júnior, conhecido pelo bicão Focca, que é penetra desde os 15 anos de idade. Dá preferência a festas de famosos e políticos, colecciona fotografias tiradas com eles (tem mais de 2.000) e, até hoje, nenhuma porta lhe foi vedada. São dele as três fotografias editadas neste «post», na companhia de Lula, Alckmin e Gisele Bundchen. Não há dúvida que, com a excepção da fotografia com Lula, o homem destoa um bocado. A cara aparvalhada de Alckmin e o à-vontade do penetra dão para perceber a arte do artista. Em Portugal, onde somos mais humanistas, já o tínhamos incorporado definitivamente no jet-set e feito dele uma personalidade. Há muitos que por aí andam com menos talento e com um percurso mais acidentado.

à distância (remix)*


Ver Portugal à distância é um exercício extraordinário. O país está dinâmico, a mexer e isso sente-se e é reconhecido internacionalmente: um governo capaz de fazer crescer a economia a níveis europeus, uma oposição responsável mas acutilante nos momentos oportunos, instituições céleres e ao serviço do cidadão, uma justiça exemplar. Os acontecimentos da vida política, cultural e social multiplicam-se e deixam siderados de admiração e espanto os observadores. O processo de pedofilia que envolveu figuras públicas chegou ao fim em prazo muito razoável para a justiça portuguesa e com uma sentença exemplar. Os partidos da direita, agora na oposição, reconstroem-se com dignidade e recrutam quadros da sociedade civil de elevado nível. Há mesmo quem afirme que o deputado Nuno Melo é o novo Bernard Henri-Lévy da latinidade, não tanto pelo mesmo ar emproado que ambos ostentam, mas pela profundidade dos raciocínios. Ribeiro e Castro é tido como sucessor certo dos Castros de Cuba, dada a sua inesgotável resistência à oposição. O líder do PSD, principal partido da direita, é visto cada vez mais como o sucessor certo de José Sócrates, o primeiro-ministro socialista em exercício. A economia cresceu, o desemprego diminuiu, o investimento estrangeiro multiplica-se, a crise (breve) do futebol já está ultrapassada, a selecção nacional continua a operar maravilhas, Saramago a escrever livros e até já foi encontrado o sucessor de Camões: o Escritor (com maiúscula) António Lobo Antunes. A vida cultural, social e artística é fascinante, e obriga ao registo das agendas internacionais. Aqui, onde estou a passar breves dias, mal sabem que sou português, acorrem a perguntar-me coisas sobre o país: as possibilidades de investimento, os pontos turísticos, as revistas que podem assinar, os jornais que devem ler («O Sol», por exemplo, é já estudado como um novo modelo de jornalismo), os livros que devem comprar, os museus a visitar, etc. Ontem, por acaso, perguntaram-me que raio era aquele pedaço de terra, aquela espécie de quintal mal amanhado que está mesmo ao lado do nosso país. E quiseram saber também se aquele «tipo» pequenote, mal-encarado e de bigodinho preto chamado Aznar, continuava a ser o nosso representante em Madrid, ou se já o tínhamos substituído.

* Dedicado a todos os patriotas que se sentiram incomodados com a primeira versão dester «post».

à distância


Ver Portugal à distância é um exercício extraordinário. O país parece estático, imóvel, sem nada a acrescentar ao nada do costume: uma greve sazonal da função pública, empresas estrangeiras que fecham portas, um governo sem chama e sem oposição, a justiça em crise. Os acontecimentos não mudam: a Casa Pia arrasta-se nos tribunal, a Direcção do CDS em guerra com o grupo parlamentar, Nuno Melo e Telmo Correia a exigirem a cabeça de Castro (mas para que raio quererão eles a cabeça do homem!?), Marques Mendes letargicamente a dizer coisas acertadinhas de tempos a tempos, o primeiro-ministro a prometer energia e vigor na governação, Alberto João Jardim em diatribe contra o governo central, a CGTP em diatribe contra o governo e a oposição, e o eterno João Proença, da UGT, com cara de enrascado, no dilema eterno que o situa entre os seus «trabalhadores» e os seus compromissos partidários. A economia na mesma, o desemprego na mesma, a vida cultural na mesma, a vida social na mesma, a televisão na mesma, o futebol na mesma, a «corrupção» na arbitragem, os resultados «falseados», o «sistema» do Sporting, o eterno conflito entre os presidentes do Porto e do Benfica, tudo sempre na mesma, o ministro Pinho na mesma, os jornais na mesma, o entusiasmo pelos «americanos» e pelo Iraque na mesma. Também, é verdade, que só olha para Portugal quem é daí. Para o resto da humanidade o país não conta e a maior parte das pessoas nem sabe que existe separado da Espanha.

guerra

Eu tenho e mantenho um velho e inultrapassável conflito com o meu colega e amigo LR, que só se poderá agudizar. O LR afirma que não há melhor gastronomia do que a brasileira. Eu digo que não há gastronomia brasileira. O LR jura inultrapassáveis os vatapás, os bóbós e as moquecas baianas. Eu garanto que todas juntas não valem um cozido à portuguesa. O LR, num requinte de inultrapassável malvadez, encheu, em Agosto passado, o Blasfémias de fotografias alusivas à sua paixão. De uma senhora enrugada e feiosa que ele diz ser «a melhor cozinheira do mundo», de um estamine de praia que ele proclama «o melhor restaurante do mundo» e, no meio do delírio, até da retrete da tasca, provavelmente, «a melhor retrete do mundo». Eu penso que o LR só pode estar a meter-se comigo. Não acredito que ele esteja seriamente convencido do que diz, e creio que pretende somente torturar-me, agora, à distância, à distância imensa que vai de um robalo escalado ou de um pargo assado no forno ao «churrasquinho» e às moquecas. Mas, mesmo nas minhas mais sórdidas ideias de vingança, não lhe desejaria os males que aqui tenho passdo em São Paulo, desde há uma semana. Ando com o estômago às voltas e já comprei todo o tipo de pastilhas para a digestão. Mas juro que se o LR me volta a falar na «gastronomia» dos vatapás, o obrigo a ingerir, numa só refeição, o abominável «churrasquinho», um rodízio de pizzas, um «hamburgão ná prómóção!» e um festival completo de sushi sashimi. Tudo regado a guaranás, chopes, fantas de frutos silvestres e inomináveis zurrapas a que dão sacrilegamente o nome de «vinho». E, como prenda de consolação, leva ainda uma visita à famigerada retrete, intimamente guiada pela famosa «cozinheira».

concentração capitalista

Tomando por exemplo a cidade de Alphaville, SP, aqui seguem alguns dados estatísticos retirados de um guia local, devidamente traduzidos e explicados, que demonstram a infalibilidade do princípio da concentração capitalista:

- Moradores (alta burguesia e capitalistas exploradores): 40.000;
- População flutuante (servos que diariamente se deslocam à cidade para serem escravizados): 170.000;
- Veículos (meios de locomoção utilizados pelos servos para chegarem aos seus antros de escravidão): 78.000;
- Empresas/Comércio (locais onde se perpetra a exploração do povo pelo grande capital): 2.300;
- Empresas estrangeiras (vampiros capitalistas maioritariamente norte-americanos, que vêm sugar ao Brasil o povo trabalhador): 56.

E, por hoje, é tudo. Até amanhã, camaradas!

decidam-se!

«Sem controlo, a iniciativa privada cria uma fosso entre os que têm dinheiro para criar mais dinheiro e aqueles que perdem riqueza para enriquecer outros, que é o que sucede no Brasil e em muitos outros países.»
Harpad, em comentário ao «post» «privatizar».

Há uma decisão que os marxistas têm, hoje, de tomar: ou abandonam o estereótipo do capitalista ganancioso e explorador, que só vê o lucro à frente, o que implica, obviamente, investir sem parar para ganhar cada vez mais, ou põem de lado a falácia da concentração do capital pelo aforro tresloucado das mais-valias, ficando com todo o lucro para eles, sem darem nada a ninguém, isto é, optando pelo aforro e não pelo investimento. Porque, de duas uma: ou investem para ganhar ou aforram sem investir. Decidam-se!

privatizar

O Brasil é a prova provada da falência do modelo de Estado contemporâneo, mesmo até no mais elementar dos motivos que o originou: a segurança dos cidadãos. Se, na verdade, todos os contratualistas - de Hobbes a Rousseau - entenderam que a necessidade de abandonar o estado de natureza se devera à procura de segurança das pessoas e bens, garantia que só uma entidade pública superior - O Estado - poderia prestar, a realidade brasileira desmente-o, hoje, em absoluto.
De facto, se perguntarmos a qualquer brasileiro qual é o valor que mais estima, ele responderá, sem hesitar, a segurança. Aí, o país divide-se, hoje, em dois: o Brasil da criminalidade violenta e da insegurança total, onde só está o poder público, e o Brasil seguro, ou menos perigoso, onde impera o poder privado dos cidadãos.###
Para concluir isto, basta olhar para a Grande São Paulo. Na capital propriamente dita impera a lei da favela e ninguém se sente tranquilo, apesar dos poderes públicos gastarem rios de dinheiro com a segurança. Se visitarmos Alphaville, a escassos quinze minutos do centro da capital, a calma e a segurança são praticamente absolutas. Diga-se, de passagem, que os cidadãos residentes constituíram o seu próprio organismo privado de segurança - o CONSEG - Conselho Comunitário de Segurança, instalaram uma rede de rádio que informa vinte e quatro sobre vinte e quatro horas as ocorrências graves e despoleta os necessários mecanismos de defesa; criaram um sistema de bloqueio das saídas da cidade, com homens, viaturas e demais equipamentos necessários; instalaram, recentemente, em Novembro de 2005, um sistema de câmaras de alta tecnologia para visionarem a cidade. Em Alphaville vive-se com tranquilidade e com níveis de criminalidade quase inexistentes. Graças a uma segurança comunitária, de facto, privada. A 15 minutos da Av. Paulista.
Quem disser que as funções do Estado, todas, mas todas as suas funções, não podem ser privatizadas deve visitar o Brasil.

08 novembro 2006

liberalismo: à esquerda. à direita ou algures?


1. Em 1994, Norberto Bobbio publicou um pequeno mas influente livro («Destra e sinistra. Ragioni e significati di una distinzione politica») sobre os conceitos de esquerda e de direita, no qual reflectiu sobre a actualidade, a utilidade e, sobretudo, a capacidade de sobrevivência daquela dicotomia aos mais de duzentos anos que já então levava sobre a Revolução Francesa, donde seria originária.
Considerando-os «conceitos relativos», mais como lugares geográficos do «espaço político» do que como «conceitos substantivos ou ontológicos», Bobbio elimina, uma a uma, as objecções à sua presuntiva inutilidade. Afirmando a distinção actual e correspondente à realidade, torna-se importante encontrar a linha divisora entre os dois espaços, um critério separador, aquilo que simultaneamente une e identifica a direita e a esquerda, e as consegue separar como realidades diferenciadas. Postas de lado ficam as dicotomias «explicativas» tradicionais: revolução/contra-revolução, ateísmo/religiosidade, inovação/tradição, democracia/ditadura, liberdade/autoritarismo. A História dá-nos modelos práticos e teóricos de esquerdas e direitas que colhem nas categorias de ambos os termos destas classificações, pelo que elas não podem ser erigidas a critério diferenciador.

2. O mesmo já se não passará, segundo o autor italiano, com a dicotomia igualdade/desigualdade. Embora sabendo de antemão que esses conceitos não são, eles também, realidades absolutas, porque a igualdade não exclui a desigualdade e esta não poderá nunca eliminar por inteiro aquela, Bobbio distingue os dois campos deste modo: «podem ser correctamente chamados igualitários aqueles que, ainda que não ignorando que os homens são tão iguais quanto desiguais, apreciam de modo especial e consideram mais importante para a boa convivência aquilo que os une; podem ser chamados de inigualitários, ao contrário, aqueles que, partindo do mesmo juízo de facto, apreciam e consideram mais importante, para fundar uma boa convivência, a diversidade». Por outro lado, quanto ao modo de intervenção política e às prioridades de cada um destes «lugares», afirma: «O igualitário parte da convicção de que a maior parte das desigualdades que o indignam, e que gostaria de fazer desaparecer, são sociais e, enquanto tal, elimináveis; o inigualitário, ao contrário, parte da convicção oposta, de que as desigualdades são naturais e, enquanto tal, inelimináveis» (...) «Disso decorre que quando se atribui à esquerda uma maior sensibilidade para diminuir as desigualdades não se deseja dizer que ela pretende eliminar todas as desigualdades ou que a direita pretende conservá-las todas, mas no máximo que a primeira é mais igualitária e a segunda é mais inigualitária». A esquerda seria, por excelência, o campo da defesa da igualdade, enquanto à direita pertenceria a defesa da desigualdade. Note-se que, quer num caso quer no outro, o autor pretende tratarem-se mais de posições ontológicas e de convicção sobre o melhor funcionamento da sociedade, do que da defesa de posições de classe ou de estamento social. Pelo menos, neste particular aspecto, o esquerdismo reclamado de Bobbio não lhe retirou lucidez nem diminuiu a sua honestidade intelectual.

3. Contudo, e de certo modo, Bobbio acaba por reconhecer alguns dos critérios definidores que anteriormente invalidara. Ora, se a direita admite que o reconhecimento da desigualdade é a melhor forma de compreender a sociedade, enquanto que, pelo contrário, a esquerda não se conforma com ela e pretende combatê-la em nome da máxima igualdade possível entre os cidadãos, isso equivale a afirmar que a primeira é conservadora (ou tradicionalista), enquanto que a segunda é inovadora e inconformista. Sensu lato, a esquerda seria revolucionária e a direita contra-revolucionária, porque a primeira quer romper com as limitações socialmente impostas, e a segunda prefere mantê-las. Bem vistas as coisas, o critério de Bobbio não se afasta assim tanto dos estigmas ideológicos, que ele pretendeu ultrapassar.

4. Como, também, não consegue inserir, neste seu maniqueísmo, o liberalismo, entendido este como liberalismo clássico e não como o soi-disant «liberalismo» voluntarista e racionalista de origem francesa. De facto, Bobbio evita qualificar o liberalismo como uma ideologia de direita, embora não seja, também, no seu critério diferenciador daquelas duas categorias, uma ideologia de esquerda. Ele entende que o liberalismo é, tal como a esquerda, igualitarista, embora se trate de um «igualitarismo mínimo» que se prende «apenas» com a «igualdade diante da lei, que implica unicamente o dever por parte do juiz de aplicar imparcialmente as leis». Mas ele será, por outro lado, de direita, na medida em que «a liberdade de mercado gera desigualdades» e o liberalismo não só se conforma, como se congratula, com isso.

5. Nestas asserções de Bobbio existem alguma injustiça e umas tantas incorrecções. Injustiça, porque ao dizer que o liberalismo aceita um «igualitarismo mínimo» consubstanciado no princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, está a retirar igual convicção à direita democrática, o que está longe de corresponder à verdade. Como, por outro lado, esse princípio não se reduz apenas ao tratamento que a aplicação da lei deve ter, mas, sobretudo, na própria forma como ela é enunciada pelo legislador: para o liberalismo a igualdade perante a lei inicia-se no próprio momento legislativo, em que o legislador, isto é, o Estado, não poderá estatuir senão normas jurídicas gerais e abstractas. O que, mutatis mutandis, permanecendo fiéis ao raciocínio de Bobbio, permite uma conclusão perversa: a esquerda igualitária trata de modo desigual os cidadãos, violando, assim, o princípio da legalidade em função de um resultado nivelador que pretende atingir.
Ora, esta visão de Bobbio em torno dos «lugares» políticos esquerda e direita acaba por perpetuar o estigma habitual da luta de classes marxista. Em última análise, se aprofundássemos um pouco mais o raciocínio, acabaríamos nas categorias tradicionais dos «privilegiados», defensores dos seus privilégios, vs. os «oprimidos», desejosos de mudanças niveladoras: a direita aceitaria a desigualdade e pretende mantê-la, quaisquer que sejam os fundamentos utilizados para isso, enquanto que a esquerda não se conformaria com a desigualdade e pretende transformar o mundo ou, pelo menos, esse mundo, isto é, aquele em que vivemos.

6. Mesmo admitindo que a direita é aquilo que Bobbio diz dela, e que a esquerda continua a ser o que sempre foi, existe um hiato por preencher, ao qual apenas o liberalismo conseguiu dar resposta. É que entre o espaço da estratificação social ordenadora e o da luta de classes, e entre aquele que vai do intervencionismo socialista igualitarizante ao intervencionismo conservador, existe um espaço imenso para o princípio da cooperação entre homens livres. A ideia é simples: numa sociedade livre e tendencialmente desintervencionada, o espaço de liberdade individual é preenchido pela livre cooperação entre os indivíduos, tendo em vista a maximização das suas condições de vida, da sua liberdade e da sua propriedade. Os liberais acreditam que entre seres racionais a composição directa de interesses é possível e contribui não para uma igualdade abstracta (que, de resto, apenas existe enquanto conceito teórico), mas para a realização individual máxima de cada um.
O princípio da cooperação social natural e espontânea - a célebre «mão invisível» - distingue, de facto, o liberalismo da esquerda voluntarista que pretende transformar a sociedade a partir da intervenção do Estado para alcançar a «igualdade», e da direita conservadora, que vê a sociedade como um «status» que é necessário preservar pela actuação dos poderes públicos. Nesta visão das coisas, somente, em parte, tributária de Bobbio, o liberalismo não está nem à esquerda nem à direita. Talvez algures, a meio, um pouco acima de ambas.

06 novembro 2006

aborto: todos socialistas

Um cavalheiro empertigado chamado João Paulo Malta acabou de adiantar no «Prós e Contras» que a solução para o aborto é criar condições para que todas as mulheres sem meios possam tê-los e, consequentemente, escolham «livremente» a maternidade. Como referiu repetidamente, a falta de casa própria, emprego e dinheiro levam-nas, muitas vezes, a optar pela solução da interrupção da gravidez. Como certamente o Dr. Malta não se proporá a facultar os seus aposentos para receber meninas e senhoras naquelas condições, e como não é possível imaginar em Portugal uma sociedade de prosperidade e abundância que erradique em absoluto ou em parte substancial a pobreza, deveria estar a pensar na criação de um subsídio de apoio à família a expensas do Estado, ou seja, dos contribuintes portugueses. Resta esclarecer como se evitaria a universalidade da benesse, transformando-a numa espécie de rendimento mínimo de nascimento garantido, já que, em tese, todas as mães poderiam alegar motivos para o requererem, ou seja, para não abortarem.
No outro lado da «barricada» a Drª Edite Estrela, insistindo na absurda proposta do PS de pôr o Serviço Nacional de Saúde à disposição de quem quiser abortar, não percebe uma coisa: o aborto é uma escolha individual da mãe; fora das circunstâncias limite previstas na lei em vigor, não é uma necessidade de saúde mental ou física. Uma gravidez em condições normais não é uma doença, pelo que não se compreende porque motivo há-de ser "tratada" pelos serviços de saúde pública. Abortar é uma decisão que deve ser assumida por quem a pratica, com todos os custos (psicológicos e materiais) inerentes, por mais ingratos que sejam, como acontece com muitas outras dificuldades da vida das pessoas. Em suma, o Estado português não tem que ser o protector das mães que abortam.
Curiosamente, até agora neste debate, de um lado e do outro, todos pedem ao Estado para resolver o problema. E enquanto ele continuar a ser «resolvido» por socialistas, em vez de o ser livremente pelos indivíduos, não conseguirá encontrar uma solução digna.

deus e o liberalismo

Há, pelo menos, duas posições possíveis sobre as relações históricas e filosóficas entre o liberalismo e o cristianismo: acreditar que o ideal da liberdade e da ausência mediadora do Estado só poderá ser compensado, nas suas falhas humanas, por uma sociedade vocacionada para o outro e para a caridade privada e institucional (propriedades imanentes ao cristianismo), como também é possível acreditar que a história da Igreja Católica e a interpretação de alguma teologia no sentido da crítica da liberdade e da propriedade limitadas apenas pela soberania do indivíduo, sejam contrárias à tradição liberal. Não é igualmente impossível dizer-se que foi nas Escolas da Igreja Católica que se encontram alguns dos Mestres fundadores do liberalismo clássico ? Molina , Mariana, Suarez, etc. e que foi nas Universidades cristãs medievais que nasceu o gosto pela Ciência e pela investigação, como é igualmente legítimo apelar à memória da Inquisição, do Índex e da Doutrina Social para afastar o cristianismo do liberalismo.
E há, também, uma terceira hipótese, francamente a que mais me agrada: a do relativismo. Quer Deus exista ou não, o assunto não é, hoje, relevante ou, então, ser-lhe-á profundamente indiferente.

«neo» produtos

Estão na moda os produtos ideologicamente «neo»: o neoconservadorismo, o neonazismo e o neofascismo, o neokeynesianismo, o neoisto e o neoaquilo, e, suprema humilhação, o «neoliberalismo». Diga-se, sem hesitações, que os produtos ideologicamente «neo» não prestam, porque estragam o original e não trazem nada de novo. Por mim, sou liberal não-«neo», antiestatista, e violentamente adepto do mercado, da ordem espontânea, do equilíbrio natural entre a oferta e a procura em todas as dimensões da vida. Se me chamarem «neoliberal» não respondo pelos meus actos. Quem sabe, à neopaulada.

plágios

Tal como o JCD, também não li o Equador e não tenciono lê-lo. Não se trata de nenhum preconceito contra o autor, de quem até tenho boa impressão como jornalista e comentador político, mas somente de racionalizar o meu tempo. Existem certamente umas (pelo menos) boas centenas de romances de qualidade superior à do livro de Miguel Sousa Tavares, que ainda não li e que gostaria de ler, embora provavelmente não o consiga vir a fazer. Por isso, ignoro se existem partes do romance que tenham sido plagiadas. Pelo que conheço do autor, não acredito que o tenha feito. Seria excessivamente estúpido, e estúpido é que não me parece que Miguel Sousa Tavares seja. Contudo, não sei, porque não li. Não sei, logo, não opino. Mas o que sei é que um país que transforma um hipotético plágio literário num caso nacional é, perdoe-me o plágio o Almirante Pinheiro de Azevedo, um país de merda, que não merece qualquer originalidade. Embora, por mim, visse com bons olhos a solução do «litígio» provocado pela ofensa com as pauladas prometidas pelo autor, uma verdadeira originalidade se comparada com a morosidade habitual da nossa justiça.

fundamentos

Tempo
Pertencemos, por inteiro, ao nosso tempo e o tempo que é nosso não nos pertence por inteiro. Desconhecemos quando terminará e aquele que nos sobra. Não o podemos substituir ou comprar. A história do homem prossegue sempre o mesmo fim: prolongar o tempo e procurar adquirir cada vez mais. O tempo é o bem mais raro e estimado pela nossa espécie. Por isso, devemos preservá-lo, respeitá-lo e usá-lo como melhor nos convier. O direito à felicidade passa seguramente pela liberdade, que temos ou não, de dispor do tempo que nos cabe.

Individualismo
Não existem categorias sociológicas. Ou melhor, as sociedades, as nações, os países, as cidades, as classes, os grupos são, todos sem excepção, conjuntos bem determinados de indivíduos e não possuem animus ou vida própria. Não valem por si, mas por aquilo que fazem ou deixam fazer os seus elementos integrantes. A grande falácia do despotismo foi e é a construção de miragens colectivas em abono das quais é sempre necessário o sacrifício do indivíduo.

Propriedade
Dispor de nós, dos nossos talentos, do resultado do que fazemos, do trabalho, do esforço, dos riscos que corremos é o primeiro direito fundamental do homem, apenas precedido pelo seu evidente direito à existência. A propriedade lato sensu não é sequer uma característica exclusiva do homem. A Etologia demonstrou há muito que o instinto territorial está gravado no código genético de um larguíssimo espectro de espécies animais. É por via da propriedade que nos realizamos, que damos sentido às nossas acções e às nossas vidas, que competimos e que crescemos. Quem nega a propriedade ou a pretende limitar em favor de abstracções categóricas colectivistas, está a negar a liberdade.

Valor
Tudo tem um valor. Intrínseco, extrínseco, próprio e de mercado. Numa sociedade de homens livres cada qual determina as suas necessidades, procura os meios para as satisfazer e valoriza os fins que pretende atingir. Numa sociedade intervencionada as coisas não valem nem por si nem por aquilo que estamos dispostos a dar por elas, mas pelo que outras pessoas, necessariamente interessadas e, por vezes, interesseiras, entendem que elas devem valer. A distorção do valor das coisas condiciona a realidade e tem quase sempre resultados inversos aos pretendidos.

Altruísmo
Mesmo quando pensamos em nós (e pensamos sempre em nós) estamos a beneficiar os outros. O mito marxista da concentração monopolista do capital aplica-se a bens, mas pode bem ser extrapolado para todos os domínios da vida, seja na empresa, na família, junto dos amigos ou mesmo perante estranhos. Um homem que esteja a ganhar, a obter mais-valias das suas acções, quererá sempre mais. Não ficará feliz com o que tem e não concebe a ideia de ficar suspenso no tempo. Ele intui que parar não faz parte da vida e, portanto, só lhe resta prosseguir. Para lá chegar terá de investir o que tem e, muitas vezes, o que julga poder vir a ter. Só quem tem poderá dar e distribuir pelos outros.

Igualdade
Os homens são iguais em si e perante os demais. Pertencem à mesma espécie, obedecem às mesmas regras comportamentais, padecem dos mesmos instintos e de idênticas necessidades. Nascem, vivem, crescem e morrem e, no fim do seu tempo, ficará de cada um a memória para aqueles que a queiram guardar. Do mais, nada subsiste. Nada justifica, assim, que uns possam prevalecer sobre os outros e estejam habilitados a limitar, condicionar ou dispor das suas existências. Homens livres são aqueles que podem coordenar entre si as suas vontades e acções. A igualdade condena a supremacia e, por conseguinte, o domínio. O estado natural do homem é a insubmissão e qualquer poder que o atinja deve ser permanentemente posto em causa.

Ordem
Entre si, os homens, melhor, só os homens, são capazes de gerar as regras que lhes sejam mais convenientes a uma sã convivência, e as instituições que as possam e devam fazer acatar. Se estas últimas ganharem vida própria, desprendida do criador e da necessidade da sua criação, subverterão a ordem natural das coisas e o fim da sua origem.

Liberdade
Só existe se a soubermos conquistar e conservar. Uma sociedade que permite sistemáticos atropelos do poder governativo, invariavelmente justificados por falácias colectivistas, não é composta por homens livres, nem aspira à liberdade.

aborto: um crime sem castigo

O aborto é crime em Portugal? Bom, parece que sim. Mas deverá ser penalizado, isto é, ao crime cometido deve a lei propor uma sanção penal que efectivamente seja aplicada? Bem, isso é que já parece que não, segundo, pelo menos, as palavras de um dos mais importantes representantes da Igreja Católica, D. Januário Torgal Ferreira, reproduzidas no DN de há dois dias. «Nunca vi de forma concreta», diz o ilustre eclesiástico, «que haja quem queira ver lançada para tribunal esta ou aquela mulher. Creio que o que repugna às pessoas é que fique fixado na lei que o aborto não é crime». Conviria que a Igreja Católica portuguesa, em antevésperas do referendo sobre o aborto, assentasse ideias, explicasse o que quer e parasse de dizer disparates.

coitus interruptus

O projecto de Zita Seabra sobre a lei do aborto abortou. Segundo um comunicado da própria, a notícia do Expresso não passa de uma falsidade que «desvirtua completamente o sentido original da minha proposta e a transforma em ridículos complôs». Só fica por entender o seguinte: se a notícia do Expresso é falsa e ridícula, nada obsta a que o projecto da deputada prossiga. Pelo contrário, o assunto é de tal modo importante, que mereceria um pouco mais de empenho da deputada, em vez de uma desistência à primeira das muitas «ridicularias» e «falsidades» com que ela certamente saberia ter de se defrontar.

especialistas em cabeças de alfinete

Há uns bons vinte anos, algumas inteligências raras decidiram fomentar o desmembramento das chamadas «licenciaturas de banda larga» em centenas de licenciaturas de especialização. Não querendo ofender ninguém, o facto é que das Engenharias clássicas, do Direito, da Filosofia, da História, da Matemática, etc., nasceram e floresceram centenas de licenciaturas sobre saberes que anteriormente eram ensinados nos últimos anos como cadeiras ou áreas de opção.
Daí resultaram duas coisas: milhares de especialistas em coisas que muito facilmente se desactualizaram com o correr do tempo, e a dispersão de alunos por inúmeros cursos. Resultou, ainda, um número desmesurado de instituições de ensino superior público e de professores contratados, que agora não têm alunos. É que, na verdade, o mercado é como o algodão: nunca se engana. E, ao fim destes anos, as pessoas já perceberam que esses cursos não lhes são úteis e preferem não os frequentar a ter de o fazer só para dizerem que são licenciados.
A actual recessão do ensino superior público deve-se tão-somente a isto. Pelo que se torna necessário e urgente regressar à formação de base em banda larga e deixar as especializações para os mestrados e doutoramentos. E é sobretudo ter coragem política para enfrentar os interesses corporativos que vão oferecer resistência a que isto se faça.

casa assaltada, trancas à porta

Os senhores reitores das Universidades públicas portuguesas, reunidos numa prosaica instituição que dá pelo nome de CRUP (Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas), andam com os nervos à flor da pele por causa da falta de alunos e dos consequentes e anunciados cortes orçamentais para as «suas» universidades.
O CRUP foi, ao longo dos últimos anos, uma instituição nefasta ao ensino superior português. Quer por se ter sempre oposto a todas as intenções sérias de o reformar - como a criação de um sistema auto-sustentado parcialmente por propinas aproximadas dos custos reais do serviço prestado - quer por ter funcionado como um lobby poderoso junto do Ministério, contribuindo para um crescimento do sector em número de instituições e de cursos de que o país não necessitava. Para isso, os senhores reitores não hesitaram nunca em socorrer-se da pressão dos estudantes, numa aliança frequente e contra-natura com as suas associações, a quem é também devida uma boa parte do estado lastimável a que o ensino superior português chegou.
Andam agora por aí a lamentar a falta de dinheiro e a exigir reformas profundas. Eu dou já, para começo de tamanho ímpeto reformista, três sugestões: a extinção do CRUP, a revisão da lei sobre associações de estudantes, retirando-lhes os privilégios de que dispõem, e o aumento real das propinas acompanhado pela criação do «cheque-educação» para os alunos sem recursos.

aborto: o que paulo portas disse à sic

Paulo Portas acabou de destruir na televisão os últimos argumentos em favor da criminalização do aborto. Esperando não lhe trair o pensamento, o que ele disse foi isto: a) que a actual lei é boa e deve ser mantida porque não leva ninguém à prisão; b) que, apesar disso, subsiste a possibilidade do Estado levar uma mulher à barra do tribunal, expondo-a a um sofrimento público e a humilhações de intimidade imerecidas, até por já ter padecido com o sofrimento de abortar. Concluiu recomendando que se deva aprofundar a sugestão de duas deputadas socialistas de proveniência democrata-cristã (a drª Rosário Carneiro e outra senhora cujo nome se me escapa), que propõem a suspensão(?) dos julgamentos de crimes de aborto. Por outras palavras: o aborto continuaria legalmente tipificado como crime, só que não se poderia julgar ninguém, muito menos punir.
Nesse caso, pergunto: serve a lei para quê? Para condenar o acto e classificá-lo moral e eticamente? Perdoe-me o dr. Portas, mas não é para isso que as leis existem.

aborto, sexualidade e responsabilidade

1. Agora que finalmente assentou alguma da previsível pequena poeira aqui lançada sobre o aborto, e que o debate do tema sempre provoca, é chegado o momento de começar a analisar a substância desse problema e tentar contribuir para uma aproximação séria ao que vai ser colocado a referendo aos portugueses, no próximo mês de Janeiro. Porque é bom que os sectores que mais contestam a modificação da lei actual se convençam que o referendo vai mesmo realizar-se. E que a probabilidade de o voltarem a ganhar é, desta vez, muito reduzida. Por isso, em vez da gritaria e do histerismo habituais, infelizmente muito comuns de parte a parte, não lhes faria mal nenhum um pouco de sensatez.

2. Uma das formas possíveis e, infelizmente, relativamente frequentes de encarar o aborto em Portugal consiste em tentar diminuir a dimensão e o impacto social do problema, sugerindo que ele não tem a expressão que lhe querem dar. Daí a propor a manutenção das coisas como estão vai um pequeno e inevitável passo. Trata-se, obviamente, de uma afirmação absurda, que não tem sequer o estatuto maior de um argumento. Nas cabeças mais benévolas resulta de ingenuidade, cegueira ou de não querer olhar para a realidade. Não deixa, por isso, de ser um completo disparate, ao qual ninguém sensato e empenhado em enfrentar o problema poderá dar o mais pequeno crédito. Bastará, para quem quiser tirar dúvidas a esse respeito, falar com qualquer jovem que não tenha ainda vinte anos e perguntar-lhe o que conhece sobre o assunto. Ou repetir a mesma pergunta a um assistente social, a um padre, a um professor, ou a qualquer pessoa que lide com jovens (e com adultos), para saber que as coisas não são assim. Nem agora, nem de há muito tempo para cá. São, de resto, às centenas as clínicas, os consultórios, os gabinetes onde se fazem abortos por este país fora, a preços muito baixos e concorrenciais. Algumas destas casas têm mesmo anúncios nos jornais de referência. Outras são espanholas, com porta aberta em pontos fronteiriços, estrategicamente colocadas para receber pessoas com rendimentos mais elevados. De resto, o absurdo do «argumento» vai o ponto dele poder ser utilizado em sentidos opostos: se o problema não tem uma dimensão preocupante, tanto faz manter a lei vigente como alterá-la, já que em qualquer dos casos os prejuízos seriam mínimos.

3. Como, também, não tem qualquer sentido afirmar-se que a lei actual é uma «lei morta», que só esporadicamente é aplicada, da qual não resulta a efectiva penalização de ninguém. O argumento é capcioso e francamente incomodativo, pelo menos para quem pugne pelo Estado de direito. E, também, poderia ser utilizado em sentido inverso do pretendido: a ser assim, mais vale metê-la na gaveta, já que ela não se cumpre e se não se cumpre não intimida ninguém. Há, contudo, neste argumento uma perversão que tem de ser exposta: a de que a justiça deve ser uma espécie de roleta russa que só acerta uma vez de muitas em muitas tentativas. Ora, para quem tem o Estado de direito como uma referência civilizacional, a justiça deve ser cega e igual para todos. Não um capricho do legislador que nos possa (ou não) sair em sorte. Daí, a repugnância de ver, de tempos a tempos, à boa maneira portuguesa, meia dúzia de mulheres, médicos e abortadeiras a serem julgados na praça pública, para sossego e tranquilidade das consciências mais exigentes.

4. Na origem do imenso problema que a prática do aborto constitui nas nossas sociedades e no nosso tempo, está a forma como nos relacionamos e como valoramos a sexualidade. De facto, na decorrência das décadas de 60 e de 70 do século passado, o sexo passou a ser um bem de fácil consumo e de acesso comum. Esta auto-designada «revolução sexual» não comportou qualquer valoração da sexualidade para além do hedonismo e do prazer momentâneo: os homens e (sobretudo) as mulheres tinham direito ao prazer e ao seu corpo, e a sexualidade era um simples meio para alcançar essas finalidades, nas quais muitos viam uma elaborada forma de «libertação». Não cabe aqui, pelo menos por hoje, tecer considerações alongadas a este respeito. Mas não é necessário ler Julius Evola para saber que a sexualidade é muito mais do que isso e que possui uma dimensão transcendente, para não dizer sagrada, ao ponto de dela poder resultar o enigma maior da existência humana, que é a criação da vida. O sexo entra hoje nas nossas vidas e nas vidas dos nossos filhos, como nunca sucedeu em tempo algum. Banalizou-se a um ponto tal que qualquer criança com 9, 10, 11 anos fala sobre o assunto que, de resto, viu e ouviu na televisão ou na Internet. Esta é a origem do problema actual do aborto em Portugal e na generalidade dos países europeus: a falta de preparação que as crianças, os jovens e os seus pais e educadores (eles, também, resultado de uma educação sexual inexistente ou muito deficitária) têm para lidar com um fenómeno que positivamente invadiu a totalidade das nossas existências, numa dimensão sem igual, seja no tempo ou no espaço de cada um.

5. Exactamente no dia de ontem (18 de Setembro de 2006), o filho de um amigo meu recebeu a sua primeira aula de Introdução ao Direito, num liceu público do Porto. O professor não teve melhor forma de se apresentar aos alunos que não fosse assumir a sua homossexualidade e manifestar o seu incómodo por não se poder casar em Portugal. Este acontecimento, que não me atrevo a afirmar ser comum nas escolas portuguesas, indicia, contudo, uma predisposição em relação à sexualidade por parte de um educador que não é muito saudável. Não que o docente em causa não tenha o direito de ter as opções que entender e afirmá-las nos sítios próprios. Mas é grave que um homem adulto, professor, que se há-de ter submetido a concurso público para ocupar as funções que desempenha, que será certamente acompanhado e avaliado pelos seus superiores hierárquicos, e que é suposto ensinar Direito a jovens, ache que a sua (homos)sexualidade deva fazer parte do seu curriculum vitae e que, por consequência, a exponha no seu local de trabalho e aos seus alunos, em vez de a reservar para os seus sentimentos e para a sua intimidade. Como, certamente, muitos outros, sejam pais, filhos, professores, educadores, ou outra coisa qualquer, entenderão, por aí, que a sua sexualidade é do domínio público, assunto corriqueiro de conversa de mesa de café.

6. A maneira como lidamos com a sexualidade está, assim, na génese de comportamentos desregrados e prejudiciais, porque precoces, excessivos e não suficientemente entendidos, que são cada vez mais cedo «assumidos» pelos jovens. Que daqui resultem gravidezes indesejadas, e se recorra ao aborto como uma solução fácil, que comporta, de imediato e na aparência, menos consequências gravosas para os progenitores, é um pequeno passo. Obviamente, quando falamos de pessoas muito jovens e imaturas, que muitas vezes agem sem conhecimento e consentimento dos pais, outras vezes com a sua expressa aprovação, não parece sensato reclamar a aplicação de leis penalizadoras por parte do Estado. Alguém minimamente lucido pode achar que é mandando estas pessoas para a cadeia, ou para a barra do tribunal, que se resolve o problema ou se castiga a dimensão plena dos seus actos? É que não só faltam aqui alguns elementos tipo da responsabilidade jurídico-penal, como e sobretudo, falta moral e autoridade ao Estado para punir. Principalmente se este se pretender assumir como legal representante da comunidade, quando esta continua passivamente a olhar a aprendizagem e para a educação sexual como coisa de importância secundária.

7. Aliás, a este respeito, não deixa de ser curiosa e sintomática a quase absoluta ausência da Igreja portuguesa em torno da temática da sexualidade e do aborto. Se, por exemplo, visitarmos o site da Conferência Episcopal Portuguesa e se formos ao link da Agência Eclésia - Movimentos e Obras, no qual se noticiam o que julgo serem os acontecimentos e factos mais relevantes da vida da Igreja em Portugal, deparamo-nos com o espantoso facto de que em 567 notícias, repito, 567 notícias, que ocupam um período temporal que vai de Janeiro de 2003 a Setembro de 2006, e temáticas que oscilam da «santidade da empresa» ao «Islão», só duas referirem a problemática de sexualidade e do aborto! Uma de 12 de Julho de 2005 (Comunicado final da Acção Católica Rural sobre Educação sexual e protecção da vida humana) e outra de 18 de Março de 2003 (Congresso da Associação dos Médicos Católicos Portugueses, sobre «Amor, Sexualidade, Educação, Procriação»). Eu sei que é devida à Igreja muita obra social no apoio a mães solteiras e a crianças abandonadas ou em situação difícil. Mas sei, também, que a Igreja nunca teve, ao longo da sua História, uma relação linear e tranquila com a sexualidade. Na verdade, embora não conheça muito da vida da Igreja Católica em Portugal, pelo que ali me é dado ver a sexualidade não parece ser matéria a que se dê prioridade.

8. Obviamente que, nestas circunstâncias, nove anos volvidos sobre o primeiro referendo ao aborto feito no nosso país, a Igreja terá alguma dificuldade em voltar a ser ouvida sobre esta matéria. Porque os nossos jovens podem ignorar muita coisa sobre o mundo e a vida; mas não desconhecem que a sexualidade e o aborto se encontram intimamente ligados, ou melhor, que a forma como vêem o segundo está directamente relacionada com o modo como lidam com a primeira. Mais uma razão para, salvo melhor opinião, o discurso sobre o aborto dever ultrapassar as banalidades e os lugares-comuns habituais, se quem defende o actual status quo o quiser preservar no próximo referendo. Pela amostra que por aqui tenho tido, não acredito que isso venha a suceder.

aborto: moral e autoridade

O RAF sentiu-se ofendido com este «post» que escrevi, em parte, em resposta a um comentário que ele fizera pedindo-me para esclarecer a minha posição sobre a descriminalização do aborto, em parte, também, porque me pareceu que devia levar o debate para além dos habituais jogos florais da retórica argumentativa.
Não me espanta a intempestividade da reacção. Se frequentemente reagimos mal quando discutimos religião e futebol, como o poderíamos evitar quando está em causa a apreciação de comportamentos alheios em «matérias de ordem moral ou de costumes»? É que, de facto, os discursos moralistas feitos publicamente e visando comportamentos alheios, têm sempre uma elevada probabilidade de ofender muita gente, mesmo que não seja essa a intenção. Por isso sugeri e insisto na sugestão, que os devemos fazer começando sempre por nós, pela nossa própria humanidade, pela justa medida das nossas capacidades, antes de nos atrevermos a ajuizar os outros.
No caso concreto do aborto, em que tanta gente se sente habilitada a ter opinião e a exprimi-la invariavelmente de modo enfático, estou um bocado farto de ver e ouvir pessoas de dedinho em riste a acusar, a exigir, a julgar e a condenar. A condenar, note-se, não apenas às agruras do inferno que há-de vir na outra vida, mas a julgamentos públicos e a penas de prisão. Num mundo onde abortar e fazer alguém abortar se tornou, infelizmente, mais comum do que ir ao cinema, há aqui um qualquer dado estatístico que me escapa, mas que me parece estar francamente falseado e que deve ser posto a nu. Porque creio que se trata de um assunto é tão sério, tão grave e que afecta negativamente tanta gente, que se deve ter um pouco mais de cuidado e pudor na forma como o abordamos. Porque do que se trata é de avaliar o comportamento moral dos outros, necessariamente a partir do nosso. Nem mais nem menos. Tudo o que fique aquém disto é uma intolerável hipocrisia.
A referência ao nome do RAF surgiu necessariamente como ponto de partida, por ele me ter jocosamente desafiado a definir com clareza e fundamentadamente a minha posição sobre este assunto. E a minha posição é, para começo de conversa, a que lá enunciei: não aceito com particular tolerância discursos moralistas sobre um tema que afecta milhares e milhares de pessoas, independentemente de quem os faz. Não me referia, obviamente, ao RAF, de quem nem me lembro de alguma vez ter lido sobre isto qualquer opinião, e cujo nome, ao contrário do que ele diz, não misturei «pelo meio» da minha «infeliz prosa», mas que referi somente no começo. O resto da dita prosa é-lhe tanto dirigido, como o é a mim, a todos os membros e leitores do Blasfémias, ou seja a quem for que pretenda esgrimir argumentos de autoridade nesta perigosa matéria. Sobre a qual, de resto, o texto do RAF nada acrescentou.

aborto: a minha moral é melhor do que a tua

Confesso que, ao fim de (quase) quatro décadas e meia de existência, poucas são as coisas e as pessoas que são capazes de me «tirar do sério». Hoje, porém, um comentário do meu amigo RAF a um «post» que editei sobre o referendo, que aí se prepara, ao aborto, teve esse notável e estimulante efeito.
O RAF qualifica a minha posição (qual posição?) de guterrista e desafia-me a apresentar os seus fundamentos. Eu penso, porém, que o RAF está seriamente equivocado. Desde logo, por eu não ter defendido, pelo menos no «post» em causa, qualquer posição em favor ou em desfavor da descriminalização do aborto. Mas, também, porque antes de mim e de qualquer fundamentação que possa vir a invocar, existem certamente inúmeras associações e pessoas com responsabilidades públicas e sociais que têm a obrigação de o fazer, a quem não tenho ouvido o RAF pedir explicações. Nem o RAF nem ninguém. Sobretudo aqueles que tanto pregam para manter o regime legal como está. E há coisas que é preciso explicar, nomeadamente, como é que concilia um ataque irracional, obscurantista e criminoso ao uso profilático e preventivo dos preservativos e dos meios anti-concepcionais, com o lacrimejante combate à proliferação do aborto. Para que se não diga que estou a guterrar, quero deixar aqui claro que me refiro à Igreja Católica, Apostólica e Romana, à hierarquia, mas sobretudo à sua comunidade de crentes e seguidores, donde vêm as manifestações de maior histerismo sobre este assunto, habitualmente aliadas a práticas pessoais que em nada condizem com tão piedosos sentimentos. Será que alguém de bom senso me dirá que a esmagadora maioria dos católicos portugueses, mesmo os de comunhão semanal, não usa preservativo? Ou que as meninas e senhoras que são católicas não tomam a pílula ou não utilizam os meios anti-concepcionais disponíveis no mercado? E que não fazem abortos, muitas vezes levianamente e apenas por razões de interesse pessoal? E que não praticam sexo antes do casamento? No plano dos princípios e da teoria pura, tudo é mais ou menos racionalizável e defensável. Só que a sexualidade - e o crescimento exponencial das práticas abortivas é resultado directo da liberalização dos costumes sexuais das sociedades ocidentais - é um dado de facto que só não é visto por cegueira ou por hipocrisia. Envolve sentimentos complexos, pessoais e impossíveis de transmitir e que, salvo melhor opinião, ninguém - menos ainda o Estado - será capaz de avaliar e de condenar ou de absolver pela justiça humana.
O que, por isso, é de evitar é que o referendo ao aborto se transforme num reportório de banalidades e de proclamações inflamadas de parte a parte, sobretudo de quem oferece soluções milagrosas e exige punições exemplares. E que não sirva para a afirmação das virtudes públicas por parte de quem se ignoram os vícios privados, e que quer julgar os outros por actos e práticas que - indicam-nos as estatísticas - muito provavelmente terá cometido ou deixado cometer.
Do meu humilde ponto de vista, não há coisa mais enervante, diria mesmo, irritante, que os discursos politicamente moralistas sobre a moral dos outros. Na questão do aborto, por mais voltas que se dêem, é sempre um juízo moral sobre o próximo que está em jogo. Quase me sinto inclinado a sugerir que quem os queira fazer, arrogando-se no direito de julgar a moral alheia, deva apresentar a sua declaração de interesses. Por exemplo: já fez algum aborto?; já pediu à sua namorada que o fizesse?; usou preservativos com a namorada, a mulher ou a amante?; pratica sexo extraconjugal?; estimula a parceira sexual ao uso da pílula?; perdeu a virgindade na noite de núpcias ou foi em estado de pecado para o matrimónio?; vê filmes pornográficos?; já foi às «meninas»?; pratica o coito anal ou não envereda por essas práticas moralmente abjectas?; e, já agora, costuma masturbar-se?
A meu ver, não ter uma folha de serviços menos que imaculada em cada um destes itens é incompatível com a arrogância de fazer juízos de valor jurídico-penal sobre os outros e exigir o julgamento público de quem tenha sido apanhado a prevaricar. Por isso, quem quiser debater nestes termos, pelo menos comigo, que avance. Terá, nessa altura, da minha parte, a devida resposta e a respectiva declaração de interesses.

condenado ao sucesso

O novo jornal do arq. José António Saraiva faz lembrar o Semanário da era Victor Cunha Rego/Marcelo Rebelo de Sousa, com uns laivos do falecido O Independente e, inevitavelmente, do Expresso. Tudo isto em registo light, fortemente vocacionado para o público feminino (o que é, em Portugal, uma vantagem competitiva).
Tem, porém, duas ou três coisas inadmissíveis, tais como uma famigerada «entrevista imprevista» a Maria Filomena Mónica, onde a sexagenária continua a exibir publicamente a voracidade da sua libido («O corpo de Sócrates deve ser bem feitinho»; «Mário Soares deve ter tido inúmeras amantes»; «correr de cama em cama é algo que se faz aos 17 anos»), a declaração de «compromisso» de Marcelo Rebelo de Sousa com o jornal («Uma palavra só para justificar este diário: a amizade por José António Lima. Se der; dá; se não, logo se verá.»), ou a indirecta da capa ao Expresso («Um jornal que vale por si. Este semanário não oferece brindes nem faz promoções»). Mas, bem pior do que tudo isso, é o destaque na capa da casa judicialmente apreendida de Isaltino, a fazer lembrar o pior «O Independente», e a assinalar o que poderá ser, infelizmente se o vier a ser, o tom do semanário. Diga-se, também, que a opinião política não está capazmente representada, sobretudo para um jornal com estas pretensões. E nem sequer a crónica de Paulo Portas («Ligações Perigosas«), sintomaticamente colocada no espaço paralelo à do Comendador Marques de Correia do Expresso (a última página da revista), dedicada a cinema e a livros, compensa aquela lacuna. Não é certamente assim que o dr. Portas nos conseguirá convencer que não está virado para a política. Não bate com o seu perfil, nem com a sua vocação. E também não é chegada ainda a hora do ex-futuro-líder do CDS se entregar às delícias das comendas.
Com todas estas características - as boas e as más - o Sol está condenado ao sucesso.

referendo ao aborto

O referendo sobre a descriminalização do aborto vem a caminho, conforme compromisso assumido pelo partido do governo, tacitamente aceite pela maior parte da oposição.
Em face da seriedade do problema, dos valores morais envolvidos, que dizem respeito a todos quantos, infelizmente, se tenham confrontado com esse dilema em qualquer altura das suas vidas, mas e sobretudo, pelas experiências recentes dos processos e julgamentos mediáticos, seria bom que as partes em confronto expusessem as suas posições com clareza e sem demagogia. Nomeadamente, os que são favoráveis à penalização do aborto, que expliquem como pode uma sociedade como a nossa evitar, de facto e não no plano retórico das palavras e das boas intenções, esse flagelo. Enquanto que aqueles que defendem a descriminalização, que adiantem que medidas preventivas poderão vir a diminuir a dimensão do problema, em vez de se limitarem a tentar resolvê-lo depois de ter surgido.
Em suma, é conveniente que uns e outros não transformem o referendo num processo de disputa político-partidária ou religiosa, mas que estejam seriamente empenhados em encontrar respostas para um dos mais difíceis problemas do nosso tempo.

uma solução (prodi)giosa

Romano Prodi propõe retirar da Constituição Europeia a Parte III e manter as duas anteriores, a fim de viabilizar a ratificação do Tratado Constitucional da UE. O fundamento é tornar a Constituição mais leve, mais ligeira e compreensível. Não me parece, que me perdoe o CAA, que seja uma sugestão ingénua, menos ainda favorável às posições soberanistas que condenaram a ratificação do texto anterior.
Para uma melhor compreensão desta problemática, há que dizer que a primeira parte do Tratado corresponde, grosso modo, a uma revisão do Tratado da União Europeia que está em vigor desde 1992; a segunda incorpora, sem mais, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada pelo Conselho, pela Comissão e pelo Parlamento Europeu em 7 de Dezembro de 2000 (e cuja natureza jurídica permanece sombria); e a terceira parte é composta pelas actuais políticas comunitárias em vigor pelo Tratado da Comunidade Europeia, por sua vez, uma revisão efectuada em Maastricht (e depois em Amesterdão e Nice) do Tratado da Comunidade Económica Europeia.
Ora, é precisamente na primeira parte que se encontram os aspectos mais criticados pelas posições soberanistas e intergovernamentais: a personalidade jurídica da União (artigo I-7º); as competências da União e dos Estados-membros (artigos I-11º e ss.); a cláusula de flexibilidade (antigo artigo 308º TCE sobre a extensão dos poderes e das competências comunitárias, artigo I-18º no texto constitucional); o Presidente do Conselho Europeu (artigo I-22º); o Ministro dos Negócios Estrangeiros da União (artigo I-28º); a cláusula passerelle (autorização genérica do Conselho Europeu para as votações por unanimidade no Conselho poderem passar a maioria qualificada, arito I-40, nº 7); as novas disposições sobre a PESC (artigos I-40º e ss.); as cooperações reforçadas (I-44º); etc.
Por outras palavras: a verdadeira Constituição material da UE encontra-se nas primeiras duas partes do Tratado, precisamente aquelas que o sr. Prodi quer salvaguardar, sob o espantoso pretexto de serem mais breves e leves do que a III. Obviamente que o Tratado da Comunidade Europeia continuará em vigor, só que será destacado do texto constitucional, onde, de resto, não faz qualquer falta.
Saliente-se, uma vez mais, que nada do que está no Tratado Constitucional é minimamente inovador. Com excepção da modificação das regras de votação (sempre modificadas nas revisões dos Tratados), da patetice do Ministro dos Estrangeiros e da cláusula passarelle, o resto está em vigor, com mais ou menos a mesma configuração, o que facilmente se depreenderá de uma leitura passageira dos Tratados. Se se recomenda ou não, é já outra conversa.

coffe break

Antes de voltarem à tradicional à dança das cadeiras e à designação de líderes carismáticos para o CDS, não seria pior que os seus responsáveis (os actuais, os anteriores e os vindouros) respondessem a algumas questões, resumíveis às duas seguintes: o que e quem representa o CDS? A democracia-cristã proteccionista e a doutrina social da Igreja? O populismo de direita avesso à União Europeia, à abertura de fronteiras, às migrações, à liberdade de comércio e de circulação? A direita presuntivamente liberal? E o partido quer falar preferencialmente para os pobrezinhos e descamisados, para a classe média, para os «queques» a que se refere o dr. Monteiro ou para os funcionários públicos? Ou terá, como até aqui, a pretensão de ser um mix de tudo isto?Talvez não fosse despiciendo que os ilustres dirigentes do partido, os actuais, os anteriores e os vindouros, isto é, mais ou menos aquela dezena de cavalheiros (e a drª Nogueira Pinto) que por lá andam a esgadanhar-se há anos, fizessem uma pausa (não necessariamente para o café...) e nos dissessem, a nós, o povo ignaro, o que se lhes oferecer sobre estes e outros assuntos.

portas 2007

O dr. António Pires de Lima anuncia nos jornais de hoje o regresso do dr. Paulo Portas à liderança do CDS, já em 2007. O fundamento dessa emergência é, segundo o próprio, o estado de degradação política a que a actual direcção e Ribeiro e Castro terão conduzido o partido, pretexto que, de resto, o dr. Portas anunciara em tempos ser o único que poderia justificar um tão grande sacrifício.
Ora, nestas coisas de regressos, sobretudo dos que são provocados pela demissão voluntária do regressado, há que ter certos cuidados. Desde logo, porque só se justificam se trouxerem mais qualquer coisa do que aquilo que se deixou. No caso de um partido político como o CDS, que teve responsabilidades governativas sob a precisa tutela do dr. Portas, ele terá de esclarecer em que é que a sua presença, agora, se distinguirá daquela que já teve no passado recente e que não o satisfez, ao ponto de se ter demitido.
Por outras palavras: há uns meses o dr. Pires de Lima proclamou sensatamente que a direita fora para o governo sem estar preparada. Acha, agora, que o dr. Portas tem algumas novidades a dar-nos nessa matéria? Porque se o seu regresso for apenas para conflituar com a actual direcção (ao que dificilmente conseguirá escapar) em nome de interesses e princípios difusos para consumo televisivo, vale mais estar quieto. Mesmo, até, porque se arrisca a ouvir do que não gosta e a perder definitivamente uma certa aura de unanimidade que deixou ao sair.