31 janeiro 2006

podem os liberais voar?

Ou porque estranho motivo nenhum «liberal praticante» consegue ser eleito para um governo nacional, como constata o Doutor Vasco Pulido Valente?
Pois não, Doutor VPV, pois não. Essa é uma verdade universal, tanto quanto estas possam existir, como os pássaros terem asas e as galinhas não terem dentes. Se bem que há uns passarocos pelas bandas da Nova Zelândia (os kiwi e os kakapos, pelo menos) a quem precisamente faltam quase por completo esses indispensáveis auxiliares de voo. Também, não lhes devem sentir a falta, porque não voam. Já quanto às galinhas, o terror que me infundem – um bicharoco desses vaza-nos um olho com uma imprevisível bicada - impede-me de lhes verificar os bicos, um por um. Logo e até prova em contrário, mantém-se a veracidade do postulado.
Quanto ao liberalismo, a coisa não anda, também, muito longe disto. Na verdade, o último espécimen político vagamente aparentado com o género liberal que por aí vi foi o dr. Frasquilho, que perdurou duas ou três semanas no departamento das Finanças do governo Barroso, donde saiu literalmente com as orelhas a arder, electrocutado com o seu famoso «choque fiscal».
Contudo, caro Doutor VPV, o liberalismo é, nos tempos que correm, mais uma pedagogia de reforço da liberdade individual, do que uma ideologia política ou, menos ainda, um programa eleitoral para consumo partidário. Contando com a bondade dos regimes democráticos, alguns liberais estão seriamente persuadidos de que se souberem convencer o eleitorado que no dia-a-dia o Estado os deve (e pode) incomodar menos, quem está no governo ver-se-á provavelmente obrigado a ceder algum do poder que detém, sob pena de perder eleições. Veja, o que sucedeu com o Presidente Bush, não o George W. que refere, mas com o paizinho e o seu célebre «read my lips». Ou o que teria acontecido com a nossa doméstica e indomável parelha composta pelos drs. Barroso e Ferreira Leite, não tivesse o primeiro rumado para outras paragens politicamente mais amenas. Por definição, um governo só liberaliza, isto é, só consente em perder poderes e abdicar de funções, se for forçado a isso: pela opinião pública, sob ameaça de ser derrotado em eleições; pelos credores externos, com o aviso prévio de falência (como sucedeu com o dr. Soares e o FMI); ou por medo do ridículo e pela força das evidências, como bem percebeu o dr. Cavaco no seu primeiro governo de maioria absoluta, quando assumiu a gerência de um Estado que era dono de tudo e que estava comicamente em plena integração comunitária.
Por fim e sobre a Srª Thatcher (de facto, assumo, um ícone destas coisas…), pouco acrescentaria ao que disse o André Azevedo Alves. Mas lembro-me de lhe ter lido, a si, há já muitos anos, um comentário sobre a misteriosa eleição do sr. John Major, em que sensatamente explicava que ele beneficiara ainda da «revolução» (ipsis verbis) que a sua antecessora promovera em Inglaterra. De facto, assim foi. A Srª Thatcher pegou num país socialista, dominado pelo funcionalismo público e pelas poderosas Trade Unions, e virou-o de alto a baixo. Deixou-o, sem dúvida, imensamente mais livre, desenvolvido e próspero do que o que encontrara quando chegou ao governo. As dificuldades que teve de assumir com os seus primeiros orçamentos (e que, não fossem a guerra das Falkland, provavelmente a fariam perder as eleições de 1983) serviram para promover reformas profundas no Estado e não para, como é uso por cá fazer-se, retocar as contas públicas, mantendo o despesismo. É uma pequena diferença que, não obstante a crónica ingenuidade política dos liberais, somos até capazes de entender.

muitos parabéns

Ao Paulo Pinto Mascarenhas, ao André Azevedo Alves e a todos os que colaboram na única revista de direita que se publica em Portugal.

2h e 30m

Foi o tempo que demorou, segundo a comunicação social, a transmissão dos dossiers em aberto na Presidência da República, na reunião que reuniu hoje Jorge Sampaio e Cavaco Silva.
Era difícil conceber melhor demonstração da importância da primeira «magistratura» do nosso sistema de governo.
É só influência!

30 janeiro 2006

liberalismo e pobreza nacional

O Editorial do Público de hoje é dedicado ao liberalismo. Trata-se, como reconhece José Manuel Fernandes, de um tema que a blogosfera irremiavelmente introduziu no debate político nacional, o que revela bem a importância que este meio de comunicação começa a ter em Portugal. A certa altura, pergunta-se: «pode um país pobre ser liberal?» Julgo que a questão merece resposta, ou melhor, duas respostas: um país pobre, se o quiser deixar de ser, terá forçosamente de liberalizar-se; e Portugal é um país pobre porque nunca se liberalizou verdadeiramente. Basta olharmos para os nossos últimos cem anos para percebermos isto.

assim, não vale!

Depois de Constança Cunha e Sá, Vasco Pulido Valente. Provavelmente, quem melhor escreve em Portugal. E é ainda anunciado um terceiro, que obviamente não desmerecerá quem o acompanha. Assim, O Espectro ameaça tornar-se o melhor blogue político português. Assim, não vale!

28 janeiro 2006

mouzinho da silveira: um «mestre do liberalismo»

José Xavier Mouzinho da Silveira conseguiu, em 3 de Dezembro de 1832, que D. Pedro IV aceitasse o pedido de demissão que lhe endereçara, no mês de Agosto desse mesmo ano, do cargo de Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e interino dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, para que fora nomeado apenas nove meses antes, em 2 de Março.

No dia em que aceitara essas funções, D. Pedro era um rei sem reino. O «governo» em que Mouzinho tomara posse não existia para além da quimérica expedição de cerca de 7.500 homens, que preparavam nos Açores o assalto ao Portugal continental e às poderosas forças miguelistas. Quando se demitiu, o «governo» a que pertencia estava cercado no Porto pelo inimigo, sem recursos, sem força, sem dinheiro, sem povo que lhe obedecesse e sem um exército que impusesse a soberania a que julgava ter direito sobre o território português e as suas gentes. Na origem da sua demissão tinham estado dois factos determinantes: a sua discordância em relação aos empréstimos que Palmela negociara e contraíra em Inglaterra para suportar o esforço de guerra e que Mouzinho achava que iriam endividar irremediavelmente o tesouro público nacional, e a decisão de confiscar 5.000 pipas de vinho do Porto aos seus legítimos proprietários, como forma de garantir o pagamento de parte dos avultados empréstimos.

Mouzinho demitiu-se e em sua substituição foi nomeado um ministério onde pontificavam Silva Carvalho, Agostinho José Freire e Joaquim António de Aguiar. Na pitoresca descrição de Victor de Sá («A Crise do Liberalismo») este novo governo, «não sentindo os mesmos escrúpulos perante o princípio da inviolabilidade da propriedade privada», prosseguiu as necessárias «reformas económicas do liberalismo» ideologicamente moderado. Para isso, continuando a citação, «os novos legisladores iniciaram um vasto processo de transferência de títulos de propriedade graças aos decretos que prescreveram as indemnizações, a venda dos bens nacionais, a suspensão da Casa do Infantado e das ordens religiosas». As pipas de vinho foram, obviamente, confiscadas aos seus donos, sem apelo nem agravo, para regalo dos ingleses que sempre foram bons apreciadores desse excelente produto.

As pipas que sobraram - e foram muitas - a esse primeiro devaste das autoridades públicas, acabaram por ser em grande parte destruídas pelas forças miguelistas no ano de 1833, que, já enfraquecidas e receando nova «operação de crédito», pura e simplesmente lhes pegaram fogo. Segundo Oliveira Martins («Portugal Contemporâneo», vol. I), arderam entre 10.000 e 15.000 pipas de vinho do Porto, e 500 de aguardente, num espectáculo dantesco que durou dias e assombrou as cidades de Gaia e do Porto, invadiu o Douro e destruiu um imenso valor que, dias antes, tinha dono. Nesta altura, Mouzinho recolhera novamente ao exílio voluntário em Paris. Estava farto da maledicência que existia a seu respeito dentro das forças liberais. Como refere Oliveira Martins, Mouzinho era visto pelos «seus» como «um doido, um singular, um original! Nem sabia a essência das coisas, nem o modo de as levar por diante. A sabedoria enlouquecera-o – era “um homem de ideias”!». Para além do mais, tinha um estranho apego a essa bizarrice da «propriedade privada», em relação à qual não admitia quaisquer transigências: nem que se mexesse nas pipas, nem na propriedade dos partidários de D. Miguel, nem em coisa nenhuma que tivesse dono legítimo. O homem, de facto, não se enxergava!

O fim da guerra civil, em 1834, ditou, como é sabido, a vitória das forças de D. Pedro sobre as do seu irmão, o «usurpador». Morto, porém, o príncipe, o regime que se seguiu foi, durante muito tempo, caracterizado pelo «devorismo» com que imediatamente se lançou sobre o erário público e pela total falta de respeito pela propriedade privada, sobretudo da que pertencia aos derrotados. Mouzinho regressou ao país nesse ano de fim de guerra, e ainda exerceu alguns cargos públicos, mas sempre sem o empenho do passado. Dos tempos em que, de facto, se convencera da utilidade da sua acção governativa, deixara cerca de quarenta e quatro Decretos legislativos, que estruturavam em moldes revolucionários a administração pública, a justiça e as finanças. Hoje são comummente reconhecidos (com excepção do Dr. Victor de Sá…) como os diplomas legais que marcaram o Portugal Novo da segunda metade do século XIX e que lhe deram alguma modernidade e permitiram um relativo desenvolvimento económico e social.

Mais de cem anos após a morte de Mouzinho, mais concisamente em 1979, noutras paragens e com outros propósitos, tomava posse do lugar de chefe do governo do Reino Unido Margareth Thatcher, a Dama de Ferro. Os seus mandatos deixaram marca no seu país, ao ponto de ter sido seguida em muitos aspectos por um primeiro-ministro de um partido socialista que, por sua vez, se mantém há muito tempo no poder. Numa entrevista que concedeu, na altura, a um órgão de comunicação social, a Srª Thatcher confidenciou que fora a leitura de um livro, muitos anos atrás, que a fizera enveredar pela carreira política. Chamava-se «The Road to Serfdom» e fora escrito por um economista austríaco chamado Friedrich August von Hayek, ao tempo vagamente tido por louco e que era ostracizado em quase todas as academias do mundo, dada a «intransigência» das ideias que defendia. Thatcher leu o livro e não achou assim.

Tudo isto vem, obviamente, a propósito da discussão que, uma vez mais, vai por essa blogosfera fora sobre o liberalismo, desta vez enriquecida pela prosa excelente de Constança Cunha e Sá. Com alguma imaginação, regressando a Mouzinho e aos do seu tempo, utilizando as categorias que decorrem do que tem sido escrito, eu qualificaria Mouzinho como um «mestre do liberalismo» sem a noção das realidades práticas da vida; os liberais que lhe sucederam como exemplos excelentes de «liberais moderados», capazes de absorver o «melhor» do intervencionismo defensor do interesse público; enquanto que os miguelistas incendiários, bom, esses seriam verdadeiros mestres da realpolitik, conservadores avisados e cheios de realismo politico.
Obviamente que, falando agora seriamente, o que gostaria de concluir é que, por vezes, a força das ideias tem alguma utilidade. Mesmo aquelas que nos parecem mais intransigentes e menos aplicáveis, mais irrealistas e menos compatíveis com a vida prática dos nossos dias, enfim, as tais que são «quimicamente puras» e que dificilmente transigem nos seus princípios fundamentais. Obviamente que isso não as torna propriedade de ninguém. Pelo contrário: quem delas se queira servir, em modelo hard ou light, é sempre bem-vindo.
Que nos façam, essas ideias, a todos, muito bom proveito, sobretudo que nos sirvam para alguma coisa, nem que seja para mantermos estas animadas discussões em tom civilizado, são os meus votos sinceros e abnegados.

26 janeiro 2006

dr. jekyll e mr. hyde

O Presidente da Comissão Europeia, segundo a TSF, advertiu «o Governo português para a necessidade de se «esforçar a sério» para pôr em prática as reformas estruturais».
Sem dúvida que o Presidente da Comissão está cheio de razão: Portugal é o país das reformas eternamente adiadas e, por isso, este empurrãozinho da União pode ser de extrema importância.
Só é pena ter chegado tão tarde. Havia de ter sido dado logo no começo do primeiro governo da coligação do PSD com o CDS, chefiado por Durão Barroso, que chegou precisamente ao poder com um ambicioso programa reformista, em contraponto ao imobilismo dos anteriores governos do PS. Que depois, uma vez lá instalado e para cumprir a tradição, meteu na gaveta.

historicismo, construtivismo e epistemologia liberal


1. Historicismo e Construtivismo
Em Maio de 1822, num pequeno livro chamado «Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para a Reorganização da Sociedade», Auguste Comte escrevia:
«Toda a ciência tem por fim a previdência. Porque a aplicação geral das leis estabelecidas segundo a observação dos fenómenos tem por fim prever a respectiva sucessão. Na realidade, todos os homens, por pouco instruídos que os julguemos, fazem verdadeiras previsões, fundadas sempre sobre o mesmo princípio, o conhecimento do futuro pelo passado.
(...) Está, portanto, evidentemente muito conforme com a natureza do espírito humano que a observação do passado possa facultar a predição do futuro, e que o possa fazer tanto em política como em astronomia, em física, em química e em fisiologia»
(August Comte, Reorganizar a Sociedade, Guimarães Editores, 4ª Ed., Lisboa, 2002, p. 146).
Esta forma de abordar os fenómenos sociais, fazendo deles uma autêntica «física social» cujo grau de previsão de resultados e de precisão dogmática seria supostamente total, entronca numa visão positivista da ciência, característica do século XIX, e que deixou resquícios na centúria seguinte. Verdadeiramente, não se trata nem de uma abordagem, nem de um método científicos, porque, mais não é do que uma convicção nas supostamente ilimitadas capacidades do espírito e da razão humanas na descoberta da verdade, que teve repercussões ideológicas inevitáveis.
Como Karl Popper assinalou na «Sociedade Aberta e os seus Inimigos», esta tradição intelectual é muito antiga: podemos, talvez, situar as suas origens no platonismo da «República dos Sábios», aqueles que, para Platão, seriam os mais habilitados numa sociedade a exercer o poder, porque melhor o podiam compreender e intuir; desenvolveu-se, mais tarde, no pensamento utópico ocidental, onde tem firmes tradições com autores como Campanella ou Thomas More.
Com o advento do racionalismo no século XVII, sob a influência preponderante de René Descartes e de Francis Bacon, esta corrente ganhou foros pretensamente científicos, e promoveu a razão a oráculo da política e da vida social. A doutrina da «vericitas naturae», ou «doutrina da verdade evidente», como Popper a designou, é um produto genuinamente cartesiano. O autor da Sociedade Aberta definiu-a como a «visão optimista de que a verdade é sempre reconhecível quando colocada diante de nós: se ela não se revelar por si só, precisará apenas de ser desvelada ou descoberta» (Karl R. Popper, Conjecturas e Refutações, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 35).
No Discurso do Método, escreveu Descartes: «Sempre me mantive firme na resolução que havia tomado de não supor um outro princípio além do que me tenho vindo a servir para demonstrar a existência de Deus e da alma, e de não tomar uma coisa por verdadeira, sem que me parecesse mais nítida e mais segura do que me tinha parecido, até essa altura, as demonstrações dos geómetras e, contudo, ouso afirmar que não somente encontrei os meios de me dar satisfação em pouco tempo, no que respeita a todos os principais problemas de que se ocupa a filosofia, mas também pude descobrir certas leis que Deus de tal modo estabeleceu na natureza, e das quais imprimiu noções nas almas que, tendo reflectido convenientemente sobre elas, não poderíamos duvidar que elas não sejam exactamente observadas em tudo o que existe ou que se realiza no mundo» (René Descartes, Discurso do Método, Guimarães Editores, 3ª edição, Lisboa, 1997, p. 43).

Da premissa da «vericitas naturae», que a passagem acima transcrita ilustra com clareza, se chegou com relativa facilidade ao historicismo como modelo a seguir nas ciências sociais. Ele consiste «no ponto de vista de que a evolução da humanidade segue um enredo e que se conseguirmos descobrir esse enredo teremos uma chave para o nosso futuro» (K. Popper, op. cit., p. 369). Parte importante da tradição política ocidental filia-se nesta visão das coisas, na ideia de que o futuro é previsível, assim como o será também o comportamento humano individual e agregado socialmente. Seja pela utilização dos mecanismos da razão por parte dos déspotas iluminados, seja pelo domínio das grandes correntes da História, como propôs Karl Marx, que «anteviu» o fim do capitalismo e o triunfo do socialismo. No século XIX, o positivismo de Comte e o socialismo científico de Marx foram teorias interpretativas da História que aplicaram os pretensos fundamentos científicos cartesianos nas suas análises e prospectivas.

No campo da política, o historicismo, pressupondo a superior capacidade da mente humana para perscrutar o futuro, concebe a possibilidade de o moldar à simples imposição da vontade humana. Levaria, por consequência, a algumas experiências de índole construtivista (o construtivismo político consiste na «innocent sounding formula that, since man has himself created the institutions of society and civilisation, he must also be able to alter them at will so as to satisfy his desires and wishes», F. A. Hayek, The Errors of Construtivism, in New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Routledge, Londres, 1990, p. 3) e de cariz orientador, planificador e dirigista, tendo sempre sub iudice o objectivo de edificar sociedades ideais ou próximas de um máximo expoente de felicidade. Apesar das suas muitas variantes, o construtivismo assenta sempre no voluntarismo político e social, o mesmo é dizer que concebe a evolução da sociedade como um resultado do exercício da vontade humana.
Neste sentido, já Jean-Jacques Rousseau escrecia no século XVIII que «Aquele que ousa lançar-se na empresa de instituir um povo deve sentir-se em condições de poder mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar cada indivíduo, que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual esse indivíduo receba de certo modo a sua vida e o seu ser; de alterar a constituição do homem para a reforçar; de substituir por uma existência parcial e moral a existência física e independente que todos recebemos da natureza» (J.-J. Rousseau, O Contrato Social, Livros de Bolso Europa-América, Lisboa, 1972, p. 44).
Na economia política, também o keynesianismo, foi uma forma de construtivismo historicista, ao propor o controlo e a planificação progamática do funcionamento do mercado, bem como o planeamento económico a partir da determinação comportamental dos agentes económicos, tendo em vista o pleno emprego, a redistribuição equilibrada dos rendimentos e o crescimento económico e social. É, por isso, também, uma forma de construtivismo e de intervencionismo, na medida em que se baseia na convicção de que certos fenómenos sociais são previsíveis e, por consequência, humanamente controláveis.

O construtivismo político, filho dilecto do historicismo, advoga o intervencionismo social como forma de moldar o curso da história e a natureza da sociedade. Ele acredita seriamente que as sociedades humanas funcionam com base em leis inteligíveis pela razão, que se podem utilizar para adaptar o futuro às suas melhores conveniências. As doutrinas construtivistas querem transformar o homem e a sociedade por actos de vontade. Agregam, por isso, ideologias políticas tão diversas quanto a social-democracia e o socialismo democrático, o comunismo e o fascismo. Em todas elas se encontra o mesmo traço comum essencial: a intervenção do Estado, de uma entidade superior aos indivíduos e à própria sociedade, feita em nome dos valores sociais estruturantes, como a justiça social, a solidariedade, a igualdade de oportunidades. O primado do público sobre o privado, em suma; do colectivo sobre o individual. Elas supõem que quem governa dispõe de mecanismos de racionalidade e clarividência superiores aos dos indivíduos concretos, capazes de precaver e conceber os cenários possíveis do futuro, autorizando-se assim a impor a sua vontade à comunidade.

2. A Refutação do Historicismo e do Construtivismo pela Epistemologia Liberal

O «princípio da impotência», enunciado pelo físico e matemático inglês Sir Edmound Whittaker e invocado por Hayek e Popper nas suas apreciações epistemológicas, é o cerne da crítica liberal ao positivismo e cienticismo construtivista e historicista.
Segundo este prisma, o problema do intervencionismo é essencialmente de índole gnoseológica, na medida em que ele pressupõe a ausência de limites ao conhecimento humano, acompanhado pela evolução da ciência positiva que lhe facultaria os meios de ascese à verdade. A ingerência na sociedade por parte dos poderes públicos estaria assim fundamentada num conhecimento científico das «leis sociais»: as «leis da história» no marxismo, as «leis económicas» no intervencionismo e no keynesianismo, as «leis raciais» no nazismo, a «lei divina» nos regimes teocráticos.
Para Hayek, «nous n’agissons jamais, nous ne pourrions jamais agir, en pleine considération de tous les faits d’une situation donné» ( Friedrich A. von Hayek, Droit, Legislation et Liberté, vol. 1 – Règles et Ordre, 2ª Ed., Presses Universitaires de France, Paris, 1985, p. 35), pelo que o conhecimento humano, ao contrário do que pretendem os cartesianos, será naturalmente limitado, em parte devido à enorme complexidade dos objectos e dos fenómenos sociais sobre os quais ele incide, e, por outro lado, pela própria insuficiência do espírito humano, incapaz de abarcar e relacionar coerentemente toda a informação e demais dados inerentes à fenomenologia social. É, apesar de tudo, essa consciência dos limites do nosso conhecimento, que possibilita o progresso científico e social: «ce fut toujours la reconnaissance des limites du possible, qui a rendu l’ homme capable de faire pleinement usage de ses capacités», afirma Hayek (idem, p. 9); «o homem pode conhecer: logo pode ser livre» (Popper, Conjecturas… , p. 33), reforça Popper.
Segundo esta abordagem epistemológica, o caminho do conhecimento é feito de permanentes avanços e retrocessos, e encontra-se fundado na aprendizagem pelo erro (método hipotético-dedutivo), o que leva a que o seu progresso resulte «fundamentalmente, na modificação do conhecimento precedente» (Popper, idem, p. 56). Por isso, as teorias e as «leis» científicas deixaram, pelo menos desde Einstein, de ter um valor absoluto e inquestionável. A evolução científica resulta sempre da colocação de novas hipóteses em torno de problemas antigos. E as «leis» científicas não são axiomas descritivos de factos inquestionáveis, mas a constatação de certas impossibilidades e limites, ou seja, de que determinados factos não se podem, pelo menos naquele momento, produzir. Nessa medida, mais do que «leis», as conclusões da ciência são probabilidades (Acerca do conceito popperiano de propensão científica e a sua demarcação do de possibilidade, cfr. Karl R. Popper, Um Mundo de Propensões, Editorial Fragmentos, 1991): indicam hipóteses de trabalho com elevado grau de coerência explicativa dos fenómenos observados, mediante os dados disponíveis no momento em que são enunciadas, que devem permanentemente ser postas à prova por outros factos e teorias: «o critério que define o status científico de uma teoria é a sua capacidade de ser refutada ou testada», afirma Popper (idem, p. 66). E é nesta asserção que se encerra o essencial do seu pensamento sobre o conhecimento científico. De acordo com esta perspectiva, «o objectivo da ciência é encontrar explicações satisfatórias do que quer que se nos apresente e nos impressione como estando a precisar de explicação. Por explicação (ou por explicação causal) entenda-se um conjunto de proposições das quais uma descreve o estado de coisas a explicar, enquanto as outras, as proposições explicativas, constituem a “explicação” stricto senso (o explicans do explicandum)» (Karl R. Popper, O Realismo e o Objectivo da Ciência, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 152).
Neste novo paradigma científico, Popper lança um desafio e sugere uma conclusão: «Acredito que valeria a pena tentar aprender algo sobre o mundo, mesmo que, ao fazê-lo, descobríssemos apenas que não sabemos muita coisa. (...) Vale a pena lembrar que, embora haja uma vasta diferença entre nós no que respeita aos fragmentos que conhecemos, somos todos iguais no infinito da nossa ignorância» (Conjecturas…, p. 56).
A aquisição do conhecimento será, portanto, obtida por sucessão e verificação: baseia-se, em parte na tradição («A fonte mais importante do nosso conhecimento – além do conhecimento inato – é a tradição. A maior parte do que sabemos e aprendemos pelo exemplo, por ouvir contar, lendo livros, aprendendo a criticar, a receber e a aceitar a crítica, a respeitar a verdade», Popper, Conjecturas…, p. 56), na experiência e na verificação permanente das asserções que temos como mais prováveis para a melhor explicação dos fenómenos observados. Aprender com o erro permite evitar a sua repetição e confere maior segurança às nossas escolhas. Este conhecimento, adquirido pela experiência e pela verificação prática das variáveis hipotéticas, origina, uma vez apuradas, regras de conduta social, às quais Hayek designou por «regras de justa conduta». Essas regras produzem padrões comportamentais ajustáveis, inatos à vida em sociedade, que nos dão as respostas mais adequadas às nossas necessidades individuais e colectivas.
Em suma, a epistemologia liberal de Popper e de Hayek assenta numa perspectiva evolucionista do conhecimento, que se baseia na tradição e na aprendizagem através do erro, e que exclui dogmas científicos e determinismos sociológicos. Para ela, a ciência é um campo aberto a novas e a todas as hipóteses, só assim podendo avançar e progredir.
O construtuvismo está, portanto, nos antípodas da epistemologia liberal. Por isso e ao contrário desta última, aquela doutrina pretende obter resultados no campo das Ciências Sociais e Humanas, que considera conclusivos, certos e precisos, e a partir dos quais analisa social e comportamentalmente os indivíduos. Segundo o liberalismo de Hayek e Popper, o pensamento construtivista é a-científico, porque se coloca à margem da premissa mais importante da ciência: a sua confrontação e verificação permanente com outras hipóteses que a possam refutar e invalidar. Os dogmas políticos do construtivismo assentam, segundo esta perspectiva, em falsidades científicas. Não podem, por isso, obter bons resultados quando aplicados à prática.

25 janeiro 2006

a não perder

Hoje à noite, a partir das 22.00 horas, com o blasfemo CAA.

caro raf,

O teu raciocínio, brilhante como sempre, só me parece falhar num aspecto: é que, ao contrário de ti, não julgo que este governo vá continuar a desgastar-se na opinião pública por muito mais tempo. Sem dúvida que o orçamento deste ano irá ainda provocar algum desagrado sobretudo na função pública. Mas as coisa serão diferentes a partir do próximo ano: dinheiro forte vindo da União, os TGV's e as OTA's a criarem a falsa sensação de desenvolvimento e de crescimento do emprego, alguma recuperação da conjuntura europeia e internacional, sem suma, tudo se prepara para que o governo do Engº Sócrates chegue a eleições legislativas em pleno ciclo de «crescimento». O que não beneficiará ninguém, a não ser o próprio Partido Socialista. Mais uma razão, a somar a muitas outras, para que a direita se acautele e se prepare para um longo jejum de oposição, caso não saiba fazer as coisas como deve ser. E, como temos visto, está muito longe disso.

represálias

Segundo a edição de ontem do «Público», (link não disponível) Sócrates proibiu represálias no PS contra Manuel Alegre.
Ora, sendo o homem deputado da Nação e não propriamente do PS, como manda a lei constitucional, o que, em miúdos, significa que não o podem expulsar da AR, e que também ficaria ridículo mover um processo disciplinar a um cidadão que decidiu candidatar-se democraticamente a um órgão de soberania, o que restaria fazer a Alegre em sede das ditas «represálias»? Esticá-lo num torniquete? Puxar-lhe as barbas sempre que entre no Largo do Rato? Obrigá-lo a declamar os seus poemas nos Conselhos Nacionais? Fazer dele Ministro da Cultura e dos Espectáculos? Mandá-lo para um convento de Carmelitas Descalços com voto de silêncio? Pô-lo a tirar um curso de Arquitectura e a ser adjunto da Bastonária? Oferecer-lhe as Obras Completas de Mário Soares devidamente autografadas? Reunir 10.000 assinaturas e constituir o «Partido dos Cidadãos» do qual seria presidente vitalício?
Não sei que represálias passaram pela cabeça de José Sócrates. Mas estas, pelo seu elevado requinte de malvadez, certamente que não.

liberalismo em 2006?

Num comentário feito a um «post» que aqui editei, o André escreveu uma frase que considero quase enigmática: «O panorama que se apresenta não é fácil mas, apesar de tudo, julgo que nunca como em 2006 (com Sócrates a PM, Cavaco na presidência e o contexto internacional actual) estiveram reunidas tão boas condições para a afirmação de uma direita liberal em Portugal».
Sem ter a veleidade de fazer a exegese do texto do André e de ter conseguido interpretar exactamente o que ele quis dizer, julgo não errar excessivamente se afirmar que ele acredita que as pessoas estão, em Portugal, fartas da crise em que permanentemente vivem e que responsabilizarão o Estado por esse facto, por terem percebido que ele é efectivamente o seu principal responsável. Daí nasceria um campo fértil para cultivar as soluções que o liberalismo propõe, reforçado pelo facto de Cavaco, a última esperança de alguma direita, estar em Belém naturalmente limitado pelas funções do cargo, e de Sócrates liderar um governo socialista.
É, porém, um erro, meu caro. Infelizmente.
Em Portugal, ensina-nos a História e a História recente, que sempre que há crise (e há crise quase sempre), os portugueses responsabilizam o Estado, é certo, mas não tanto por ser causador da crise (em Portugal, não te esqueças, a culpa morre sempre solteira...), mas por não a resolver. Por isso, a resposta tradicional da direita (e da esquerda) à crise do Estado é, em Portugal, mais Estado. Veja o André o hiato «epistemológico» existente entre o prometido «choque fiscal» do PSD de Barroso e a política efectivamente seguida pelo governo do mesmo... «uma vez conhecida a grave situação do país».
Ou seja: num país pobre, com recursos escassos, com um produto nacional cada vez mais reduzido, sem economia, sem confiança, sem classe média, sem empresas prósperas e seguras no mercado comunitário, com taxas loucas de desemprego, as pessoas agarram-se ao Estado, que julgam ser ainda a entidade mítica que durante séculos se habituaram a venerar, para que lhes resolva os problemas que precisamente lhes criou.
Não deixa de ser engraçado ver-nos sistematicamente a pedir ao autor da desgraça que nos livre dela. Mas, meu caro André, em Portugal é assim mesmo. É mais ou menos como a «Gabriela» do Jorge Amado: já nasceu assim e vai ser sempre assim. À esquerda e, por maioria de razão, à direita.

24 janeiro 2006

excelente

e se sampaio tivesse sido um bom presidente?

E se, ao invés do que tem vindo reiteradamente a afirmar o meu bom amigo CAA, Jorge Sampaio tivesse sido um bom e não um mau Presidente da República? Imagino que a hipótese possa parecer bizarra, mas é defensável. Vejamos porquê.
Sampaio foi Presidente num sistema semipresidencial atenuado por dez anos de duas maiorias parlamentares do PSD, que levaram Mário Soares, então Presidente, a diminuir aquilo que muito provavelmente gostaria que tivesse sido o seu protagonismo político.
Sampaio não era, ao contrário de D. João VI com quem o CAA não se cansa de o comparar, chefe do governo. Não lhe competia, por conseguinte, governar, nem tinha aí responsabilidades, ficando essa função reservada ao governo propriamente dito, suportado pelo parlamento.
No sistema semipresidencialista que a revisão constitucional de 1982 nos legou, os poderes do Presidente dependem mais da interpretação que o titular deles faça, do que propriamente da letra da Constituição. Nessa medida, tanto pode o papel do Presidente ser maximizado, aproximando-o do modelo semipresidencialista francês, através de um efectivo e diário acompanhamento fiscalizador e, indirectamente, orientador da acção do governo, como pode ser minimizado, aproximando-o, então, da matriz parlamentar, onde o Presidente é pouco mais do que um símbolo do Estado, intervindo somente em momentos de excepção.
Sampaio escolheu visivelmente a segunda possibilidade. O que é de louvar se tivermos em conta as suas origens políticas e partidárias, e, mesmo até, o temor que a sua primeira eleição suscitou nalguma direita. Quando, sem que nisso tenha tido a mínima responsabilidade, o governo de Barroso caiu, Sampaio escolheu a solução parlamentar, contra a orientação maioritária do seu partido e, como se veria meses mais tarde, do sentimento político do país de então. Quando dissolveu a Assembleia fazendo cair o governo de Santana, ninguém se admirou. Nem o próprio Primeiro-Ministro, que hoje reconhece que o poder executivo, em democracia, deve ser sempre conquistado e não recebido em herança.
Mas Sampaio poderia ter escolhido outra via: ter-se imposto aos sucessivos governos que tutelou. Teve espaço para isso quer nos dois governos socialistas, ambos sem maioria absoluta na assembleia, como nos dois de direita, resultantes de uma coligação do PSD com o CDS impensável horas antes dos resultados eleitorais, e que deu em vários momentos pretextos para intervenções presidenciais. Não o fez e fez bem em não o ter feito.
Acresce que no uso das suas funções, Sampaio soube sempre separar o que era estritamente do domínio público do seu domínio privado: a sua mulher foi sempre discretíssima, ao contrário das de outros no passado, e dos seus filhos não se ouviu quase falar, ao contrário, também, dos de outros no passado recente. Parecem aspectos menores mas, a meu ver, são de relevo para quem reclama uma República civilizada e uma separação total entre a classe política e a sociedade civil.
É certo que Sampaio pode ter tido hesitações e actos menos louváveis. Em dez anos de funções, quem os não teria? É certo, também, que Sampaio não foi o homem que «pôs o país na ordem». Graças a Deus, embora reconheça que isso faz mossa a alguma direita incapaz de cuidar de si mesma, sempre à espera do «homem providencial». Mas não há dúvida que os seus dois mandatos exibiram o que deve ser um Presidente da República em semipresidencialismo «light», próximo do parlamentarismo. Antes assim, do que o contrário. Lembremo-nos, por exemplo, do que foram os dois mandatos do General Eanes, ou a segunda parte do segundo mandato de Mário Soares, e, talvez, os dois mandatos de Sampaio ganhem outra dimensão.

23 janeiro 2006

Três conclusões sobre a direita

Que decorrem dos resultados eleitorais de ontem:

1. A direita com expressão partidária (PSD e CDS) continua em minoria no país. Se, ontem, tivesse ido a votos, mesmo com o descontentamento popular contra o governo socialista, não teria obtido maioria no parlamento. A não ser que esteja genuína e ingenuamente convencida, que os 50,6% dos votos de Cavaco são seus.
2. A direita só chega ao poder em coligação, pré ou pós- eleitoral, dos dois referidos partidos. Nem Francisco Sá Carneiro, fundador e líder carismático do PSD, se atreveu a tentar conquistar sozinho a maioria absoluta dos lugares do parlamento: fez a AD e nela juntou o PSD com o CDS, o PPM e alguns independentes. Em mais de trinta anos de eleições democráticas, só por duas vezes consecutivas o PSD obteve sozinho aquela maioria. Curiosamente, com o homem que ontem voltou a repetir o feito.
3. A entrada, de novo, de Cavaco Silva no jogo político retirará ao personagem a dimensão sebastianista com que alguma direita foi alimentando o mito. Com a sua ida para Belém, a direita ficará mais uma vez desprovida da sua única referência mítica, referências sem as quais dificilmente consegue ter vida própria. Cavaco passou, desde ontem, de expectativa a responsável e não irá queimar o seu capital político em jogadas de bastidores. Fará aquilo que lhe compete: acompanhará o governo no melhor e no pior. Os sistemas de governo semipresidencialistas têm destas coisas: são, como os casamentos, supostamente para toda a vida.

coincidências freudianas

A SIC está a passar, neste momento, o «Air Force One»: um filmaço com o Harrison Ford, cuja história é a de um Presidente sequestrado no seu próprio avião...

a ausência mais notada

Não do próprio Paulo Portas, que inteligentemente está em sabática política, mas sobretudo da geração de políticos que formou ao longo dos anos n' O Independente e no CDS. O que foi feito deles? E o que será deles nos próximos dez anos se Portas não regressar?

22 janeiro 2006

jesus christ superstar

fraquezas

A precipitação de José Sócrates em falar imediatamente a seguir ao começo do discurso de Manuel Alegre.
As intervenções de António Vitorino ao longo da noite.
Inimagináveis, dois «posts» atrás.

jerónimo e louçã

Os resultados demonstram o que dizíamos há muito: que a existência de duas forças partidárias à esquerda do PS, o PCP e o BE, com expressão eleitoral média, foi uma anomalia eleitoral provocada pela excessiva transferência de votos da direita para a esquerda nas últimas eleições legislativas. Em situação normal, isto é, de equilíbrio entre as duas partes do sistema, como hoje se parece estar a verificar, não há mercado eleitoral à esquerda para garantir uma tão grande oferta de partidos e mandatos.
O confronto de hoje entre os dois chefes de cada um desses partidos, prova, também, que o PCP recuperará o seu espaço histórico e que o Bloco de Esquerda está condenado a desaparecer, ou a reduzir-se a um mínimo insignificante, já nas próximas legislativas. Não era, de resto, outra a hipótese mais previsível. O PCP, goste-se ou não, é um partido sociologicamente genuíno, com história, tradições e implantação real na sociedade portuguesa. O Bloco não passa de um fenómeno de circunstância, urbano, chique, universitário e vagamente cosmopolita. Não bate a cara com a careta.

a direita já perdeu as eleições

Seja qual for o resultado de hoje à noite, existem já um vencedor e um derrotado anunciados: o Engº Sócrates e a Direita portuguesa. Pelas razões que se seguem.
Primeiro, porque as eleições presidenciais marcam o fim de um longo período eleitoral e o início de um não menos extenso mandato legislativo com maioria absoluta do PS.
Segundo, porque o governo exigirá ao Presidente eleito, sobretudo se ele for Aníbal Cavaco Silva, solidariedade nas medidas difíceis que continuará a tomar. Ora, como Cavaco sempre disse, a estabilidade governativa é condição essencial para o bom governo e o desenvolvimento sustentado do país. Se for necessário, Sócrates não se inibirá de lembrar ao professor que o «deixem governar».
Terceiro, Sócrates continuará no governo nos próximos quatro anos, sem eleições. Qualquer resultado que beneficie Manuel Alegre e diminua Mário Soares é-lhe indiferente e, sobretudo, à gigantesca fila de servidores do governo e da administração pública.
Quarto, Cavaco não é, não foi no passado e sê-lo-á ainda menos no futuro, o líder da direita. Quando foi primeiro-ministro dizimou o CDS e fez do PSD um partido que respondia apenas à sua voz. Se a direita, principalmente o PSD, está à espera de benesses e de favores vindos de Belém, que se desengane.
Quinto, porque ainda que Cavaco quisesse (e não quer) a direita portuguesa não existe. No PSD vive-se de uma máquina partidária dependente do poder autárquico conquistado e da partilha do grande «centrão» que, mesmo em oposição, o PS e o PSD sabem, em seu proveito, manter. Goradas as experiências feitas com Fernando Nogueira, Durão Barroso e Santana Lopes, seguia-se, inevitavelmente, na linha de produção de «líderes» laranjas Marques Mendes, o último dos descendentes de Cavaco que faltava ainda testar. Mas Mendes não é líder que convença o eleitorado e a própria máquina do partido. Se o fosse, há mais de dez anos que isso se teria notado.
Do CDS não existem notícias, que não sejam desavenças e picardias rotineiras entre alguns «notáveis» e o líder actual. Entre o grupo parlamentar e a direcção do partido. Ou seja, o mesmo de sempre e de há muitos anos a esta parte.
Em suma e em síntese, a direita que, ao invés do que recomendou o dr. Pires de Lima, não se está efectivamente a preparar para governar (seja lá o que isso for), bem poderá arriscar-se a ver o PS de Sócrates a mandar tranquilamente no país durante os próximos oito anos, sob a tutela de Aníbal Cavaco Silva.

21 janeiro 2006

dia de reflexão (8)*

Grace
* Com o alto patrocínio da aL, a quem agadecemos a sugestão.

dia de reflexão (7)*

Sofia
* Com o alto patrocínio da CNE

dia de reflexão (6)*

Raquel
* Com o alto patrocínio de CNE

dia de reflexão (5)*

Kim
* Com o alto patrocínio da CNE

dia de reflexão (4)

Jacqueline (três)

dia de reflexão (3)

Duas

Kathleen

dia de reflexão (2)

Uma

dia de reflexão (1)

Conforme o prometido no «post» anterior, editaremos, ao longo do dia de hoje, um conjunto de «posts» cuja finalidade consistirá em ajudar os nossos eleitores a reflectirem sobre a importância do acto que os espera no dia de amanhã. Cumprindo as normas eleitorais em vigor, competentemente fiscalizadas pela CNE - Comissão Nacional de Eleições, logo, sem falar em política.

20 janeiro 2006

advertência aos leitores

Considerando os ditames legais e constitucionais, e querendo evitar sanções e multas da CNE - Comissão Nacional de Eleições, este blogue não publicará qualquer «post» de natureza política (directa ou indirecta) entre as 00.00 horas de Sábado e as 20.00 horas de Domingo. Todos os «posts» a editar serão dedicados ao «dia de reflexão» e de apelo ao dever (obrigação) cívico de votar.

e para quebrar a rotina, a minha homenagem a Aristóteles*

*"Se as mulheres não existissem, todo o dinheiro do mundo não teria sentido", Aristóteles. Onassis, claro.

19 janeiro 2006

grandes momentos do dia

Na campanha de Cavaco Silva:

- «Senhor Professor, queremos vê-lo no Governo!», berra uma apoiante eufórica.
- «Não é no Governo, é na Presidência», comenta outro apoiante.
- «Na Presidência!, na Presidência!»

- «Tenho os pés geladinhos!», afirma uma apoiante de Lamego, enquanto aguardava na rua o candidato.

- «Aníbal, tu tens nível!, Aníbal, tu tens nível!», proclama outro apoiante da mesma cidade ao recém chegado candidato.


Na campanha de Mário Soares:

- «És um borrachinho!, És um borrachinho!», diz uma fã ao candidato.
- «O senhor é um grande dinossauro! Merece ir para Belém!»

responda se souber

O que será melhor para o PS: Cavaco à primeira ou Alegre na segunda?

sondagens

Está na altura de Soares exigir mais quinze dias de campanha.

o problema da união europeia

Começa a resultar evidente a inoperacionalidade da União Europeia, desde que se consumou o mega-alargamento a mais dez Estados. Se a quinze os consensos necessários para a adopção das grandes decisões eram manifestamente difíceis, lentos e, por vezes, desadequados, a vinte e cinco a União não conseguiu tomar ainda qualquer decisão de fundo, que não fosse a de não decidir sobre questões essenciais para o seu futuro. A saber, o Tratado Constitucional e o Orçamento. Com a entrada da Bulgária e da Roménia, em 1 de Janeiro de 2007, a União passará a vinte e sete membros, prevendo-se, obviamente, o agravamento do funcionamento da sua vida interna.
Tendo a exacta consciência da dificuldade em compatibilizar o alargamento comunitário a novos países com a agilidade necessária dos seus processos de decisão, os Estados-membros promoveram a reforma de Nice que foi, de imediato, considerada insuficiente. Por essa razão, na própria cimeira que aprovou aquele Tratado foi aprovada uma declaração que determinava a realização de uma revisão profunda dos procedimentos institucionais da União, a tempo do novo alargamento. Daí resultou o Tratado Constitucional.
Que as regras de Nice não chegam, está demonstrado à exaustão. É com elas de a União tem vindo a funcionar e os resultados estão à vista: não há consensos unânimes sobre as questões fundamentais. Vale, por isso, a pena reflectir um pouco sobre as razões que levaram a este estado de coisas e se a subsistência da União como entidade política se justifica, ou se não seria preferível os Estados abandonarem-na, dando-a por morta e enterrada.

Diga-se que, de começo, as razões que presidiram à criação das Comunidades Europeias na década de cinquenta do século passado, não subsistem neste momento. Na altura, tratava-se de criar um espaço de liberdade económica e mercantil entre os povos da Europa Ocidental, que fizesse germinar raízes de amizade e paz que afastassem o fantasma da guerra. Por outro lado, tratou-se, também, de apostar na liberdade de comércio como princípio civilizacional estruturante de desenvolvimento, contra o tradicional proteccionismo que os Estados soberanos europeus tinham imposto nos últimos séculos. Nessa medida, provavelmente sem a consciência plena disso, Monnet foi um liberal clássico (sim, sim, eu sei que ele esteve ligado a governos socialistas e a gabinetes de planificação económica, mas, quanto à integração comunitária, defendo há muito esta tese, que tentarei descrever e fundamentar um destes dias, em «post» a editar sobre o assunto), no método adoptado e posto em prática para a integração dos Estados da Europa Central e Ocidental. A ameaça soviética era, também, um factor importantíssimo a ter em conta, e a existência de um eixo atlântico defensivo tornou-se indispensável, e só poderia assentar numa Europa Ocidental (a que ficara fora da alçada soviética) economicamente forte e democraticamente organizada.
Com a queda do império soviético, a Europa comunitária foi obrigada a abrir-se aos países de leste. Durante décadas acenara-lhes com os valores da democracia, da liberdade e do mercado e, por isso, fechar-lhes a porta que lhes daria acesso a esse mundo na altura em que eles se acabavam de libertar de regimes ditatoriais, teria tido consequências imprevisíveis. Para além de que, se não o fizesse, outros o haveriam de fazer, perdendo, assim, credibilidade e diminuindo a sua capacidade de parceiro económico e político na comunidade internacional.

A queda da URSS, o Tratado de Maastricht e os desenvolvimentos tecnológicos, aceleraram aquilo a que se designa vulgarmente por «globalização». Face a este fenómeno, não podia ter sido pior a reacção comunitária: em vez de apostar no aprofundamento da liberdade de comércio com os países terceiros, começou a adoptar medidas proteccionistas e de ordenação centralizadora e planificadora das suas políticas e das dos Estados-membros. Ampliou as suas áreas de intervenção, dirigindo-se para domínios que não lhe cabiam, nem era suposto virem a caber. O Tratado de Amesterdão e a definição de um «modelo social europeu» foi um ponto de viragem indesejável, mas que marcou o futuro da integração comunitária. A recente proposta da criação de um imposto comunitário é a mais grave prova de que algo vai mal, muito mal, na Europa comunitária. Porque, o problema não consiste em saber se a União se estava ou não, e se devia ou não, converter-se numa Federação. Há muitos tipos de federalismo e este não carece necessariamente de um Estado central. A ideia do federalismo de Monnet e de Rougemont, ao contrário da de Spinelli que não vingou, era a de um federalismo funcional e não a de um federalismo estadual centralizado. O princípio da tributação directa dos cidadãos europeus pelas instituições comunitárias é a prova de que, ao fim de todo este tempo, o modelo de federalismo estadual centralizado se poderá vir a impor na integração comunitária, como suposta medida de salvação da dispersão produzida pelo alargamento. Trata-se, obviamente, de uma solução socialista, ao arrepio da sua tradição, das suas origens e do que foi lançado pelos seus fundadores. Não interessa a ninguém, será um modelo impossível de impor aos seus vinte e sete membros e, por consequência, poderá bem determinar o fim da própria União Europeia.

destaques

O Amigo do Povo, onde participam Luís Aguiar Santos, Bruno Reis, Ana Cláudia Vicente, João Miguel Almeida e Fernando Martins.
O regresso do velho Veto Político, do Nélson Faria.

18 janeiro 2006

o eterno retorno

Roteiro possível para um filme sobre os próximos anos:
Take 1
22 de Janeiro de 2006, 20.00 horas

Como era de esperar, o Professor Cavaco Silva ganha as eleições presidenciais com uma esmagadora maioria de 59,9% dos votos expressos. Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã proclamam vitória por se ter conseguido evitar que o candidato da direita tivesse ultrapassado a «fasquia plebiscitária» dos 60%. Manuel Alegre diz que com estas eleições se «inaugurou um novo ciclo de cidadania política em Portugal». Mário Soares clama por fraude eleitoral e anuncia que irá mover-se internacionalmente para que se torne público o escândalo político português. «Nem o Bush foi tão longe contra o Gore», declarou. As personalidades a contactar incluem nomes prestigiados como François Miterrand, Olof Palme e George Papendreus. A Internacional Socialista em peso, em suma.

Take 2
22 de Janeiro de 2006, 20,30 horas

O Primeiro-Ministro felicita o candidato vencedor, bem como «todos quantos participaram neste acto de elevado sentido democrático», dizendo que em democracia não há vencedores nem vencidos e que espera do eleito chefe de Estado a mesma lealdade institucional que, como Primeiro-Ministro, usará para com ele.

Take 3
22 de Janeiro de 2006, 21.00 horas

O líder do PSD dá uma conferência de imprensa para felicitar o Presidente da República eleito. Realça que, não obstante a dimensão nacional e apartidária da candidatura vencedora, todo o PSD se empenhou em uníssono para «esta retumbante vitória do seu antigo Presidente». Santana Lopes comenta em directo na SIC-Notícias estas afirmações, demarcando-se do «apoio incondicional de Marques Mendes a uma presidência que irá destabilizar o governo e a oposição, aí sim, em uníssono». Alberto João Jardim promove uma extraordinária festa extraordinária no Chão da Lagoa para comemorar a conquista da presidência à extrema-esquerda, afirmando, ao som do «bailinho da Madeira» que espera que «agora, que vai para onde vai, o Sr. Silva não se esqueça de onde vem».

Take 4
Anos de 2006 a 2010

O relacionamento institucional entre Belém e S. Bento não poderia ser mais próximo. O Primeiro-Ministro elogia «o alto sentido de Estado do Sr. Presidente da República», enquanto que este se refere frequentemente «à acção determinada e corajosa do governo em resolver a crise». O Presidente mantém uma intensa actividade de condecoração de patriotas em cada 10 de Junho e acompanha atentamente a acção do governo nas reuniões semanais das quintas-feiras. A sua popularidade sobe estrondosamente nas sondagens, chegando a ultrapassar os 80%. Começa a correr o boato de que o PS não apresentará candidato às eleições de 2011.
Santana dá uma entrevista por ano à SIC-Notícias na qual afirma que, como era previsível e ele advertira, o Sr. Presidente da República está a destabilizar o seu partido, o PPD-PSD. Marques Mendes reage dizendo que «o mais alto magistrado da Nação não pode ser posto em causa por aventureirismos políticos» e que o partido se tem de concentrar para a disputa legislativa que se aproxima.

Take 5
Ano 2010

As eleições legislativas dão ao PS uma confortável maioria de 114 lugares na Assembleia da República. O Presidente empossa o novo governo, presidido pelo Engº Sócrates. No PSD há agitação e Marques Mendes é substituído em Congresso por Marcelo Rebelo de Sousa que, embora tivesse garantido ao longo das semanas anteriores que nunca voltaria a liderar o seu partido de sempre, acaba por aceitar cumprir mais este «serviço ao país e à democracia». Tem por opositor Santana Lopes, que desiste da candidatura durante o próprio congresso, por achar que «as regras do jogo estão viciadas», garantindo que só voltará a candidatar-se a essas funções quando houver directas no partido.

Take 6
Ano 2011

Começam a circular boatos de que as relações entre Belém e S. Bento já não são as mesmas. Há dirigentes do partido do governo que se referem expressamente ao Presidente da República como «força de bloqueio». O Primeiro-Ministro não comenta e o Presidente nada diz. A contestação social agrava-se, aumenta o desemprego e, segundo Bruxelas, o défice das contas públicas disparou no último ano.
Nas eleições presidenciais, o PS apresenta como candidato oficial o ministro Santos Silva, que representa, para o líder do partido, «uma aposta ganhadora». O nome de Mário Soares chegara a ser falado. Pelo próprio. Os resultados são, contudo, concludentes: o Presidente é reeleito à primeira volta com 75% dos votos. Soares comenta: «comigo, isto não tinha sido assim».
Take 7
Ano 2012 (1º semestre)

As convulsões no País e no interior do PS levam à demissão de alguns ministros. Os atrasos na construção do TGV e da OTA, bem como o agravamento abrupto dos seus orçamentos, suscitam reservas da oposição e do Presidente, que convoca uma reunião de emergência em Belém com o Primeiro-Ministro. Agastado com toda esta situação, o Primeiro-Ministro fala em «forças de bloqueio» e confessa-se farto das «críticas sem sentido de Estado da oposição». À saida de uma das reuniões semanais em Belém pede que o deixem trabalhar. O governo é reformulado, ascendendo às principais pastas ministeriais os anteriores secretários de Estado. No PS crescem as divisões e no PSD ninguém se entende.

Take 8
Ano 2012 (2º semestre)

Cai a «Comissão Barroso», em fim de segundo mandato, por manifesta incapacidade da mesma resolver o problema do Tratado Constitucional e por falta de orçamento aprovado. Ao fim de todos estes anos Barroso bate estrondosamente com a porta e insinua falta de apoio do Partido Socialista Europeu, por directa influência do Partido Socialista português, acto que considera uma deslealdade para com o interesse nacional. Na sua declaração de despedida ao Parlamento Europeu, afirma: «estou farto de trabalhar com duodécimos!» Regressa de imediato à pátria e começa a falar-se insistentemente na sua candidatura à liderança do PSD, agora cheio de prestígio internacional. Agitado com este sobressalto e pelos rumores de eleições antecipadas, o partido convoca um congresso extraordinário, perfilando-se como candidatos assumidos Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa. Nos mentideros o nome de Barroso é falado como possível surpresa de última hora. Santana Lopes fará um discurso no Coliseu, embora não se saiba ainda o que pensa fazer. Na sua última entrevista à SIC-Notícias disse que «apesar de ter em tempos afirmado que só me recandidataria à liderança do meu partido, o PPD-PSD, em directas, há coisas que estão escritas nas estrelas!»

15 janeiro 2006

os restos do regime

A uma escassa semana do acto eleitoral que o seu principal protagonista e provável vencedor, Aníbal Cavaco Silva, qualificou como o mais importante dos próximos dez ou quinze anos, o que dizer?
Em primeiro lugar, que os candidatos parecem não saber com exactidão quais são os poderes e as competências que a Constituição atribui à magistratura a que se candidatam. Numa versão mais generosa para esses protagonistas, diríamos que é a própria Constituição que não clarifica com precisão o funcionamento dessa magistratura, deixando, assim, um amplo espaço para as «sensibilidades» dos seus titulares e as circunstâncias da política geral. O que é francamente pior.
Em segundo lugar, que os protagonistas da eleição constituem verdadeiramente os restos do regime: dois antigos Primeiros-Ministros, um deles ex-Presidente da República, um poeta que foi durante mais de trinta anos um político medíocre, e dois chefes de fila de partidos menores, em disputa, um com o outro, pelo eleitorado de cada uma das agremiações que dirigem.
Em terceiro lugar, que esta eleição ocorre no mais difícil momento da III República, onde à crise política e económica se junta uma crise moral generalizada, que provoca uma completa desconfiança em relação a todas, mas todas sem excepção, magistraturas do Estado.
Diga-se, assim, que em três décadas que o regime leva já, não conseguiu melhor recurso para acudir à sua mais grave crise de sempre que o dos seus senadores. Num país normal, onde as coisas têm um tempo próprio, todos eles estariam a tomar conta dos netos, cobertos de honrarias e distinções públicas. Em Portugal, preparam-se para salvar a pátria: da crise, da falta de confiança, do descalabro do desemprego e, claro está, de uns dos outros. Tal e qual Bernardino Machado, chamado pela segunda vez à chefia do Estado em Dezembro de 1925, para salvar a República de si mesma. Missão que, de resto, desempenhou com brilho, distinção e sucesso até ao dia 28 de Maio do ano seguinte.
Não vivêssemos na Europa comunitária e estaríamos já todos, alguns dos candidatos incluídos, a bater com as panelas e tachos no meio da rua, em pujante «cacerolização» antecipadora do fim do regime.

14 janeiro 2006

espantoso

O que espanta neste país é a capacidade que ainda tem para se espantar.

13 janeiro 2006

os limites da democracia representativa

As queixas que, nos últimos anos, se têm vindo a avolumar sobre os excessos cometidos por instituições públicas e os atropelos aos direitos fundamentais dos cidadãos são graves, mas não são de agora. Menos ainda devem ser limitadas a assuntos que, por força do estatuto público dos intervenientes, acabam por ser divulgadas na comunicação social.
Na verdade, o Estado democrático fundado no império da lei e na soberania popular ilimitada, transformou-se num perigoso instrumento nas mãos das maiorias sufragadas, a montante, pelo voto popular, cujos mandatários actuam sem efectivos controlos políticos.
Não é, porém, matéria nova. Já na década de 70, em conferências e artigos publicados, Hayek alertava para esta subversão do Estado democrático, que deveria garantir e não ameaçar os direitos individuais. Na génese deste problema residem dois aspectos fundamentais: a leitura rousseuaniana da democracia representativa, à qual não devem ser impostos limites objectivos, e a instrumentalização da lei, posta ao serviço dos poderes públicos e não dos direitos individuais. Numa sociedade liberal, a lei (o direito) garante a liberdade. Numa sociedade estatizada, a lei garante os poderes e os fins do Estado.
Em conclusão e para qualquer mediana inteligência é fácil compreender o seguinte: se o Estado abusa dos poderes que tem, é porque tem poderes a mais, e só uma forte cultura liberal poderá remetê-lo às suas funções originárias, para as quais foi, de resto, contratualizado.

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8.208 ou 7.792?

12 janeiro 2006

constituição e segurança normativa

Parece que o governo holandês terá anunciado a decisão de não voltar a referendar o já decrépito Tratado Constitucional Europeu. Logo se ouviu um coro entusiástico de aplausos pelo, ao que se julga, enterro definitivo do cadáver putrefacto em que aquele luxuriante documento se transformou. Eu recomendaria, porém, alguma cautela e outra tanta dose de prudência nos festejos. E tentarei explicar porquê.

Prescindindo das razões de fundo que levaram o Estado, repito, o Estado holandês a tomar aquela atitude (e nisto, para os liberais, o Estado é sempre como o mordomo das novelas da Agatha Christie...), irei directamente aos aspectos estritamente comunitários. E propunha um desafio: alguém sabe explicar, com precisão e rigor, como são tomadas as decisões do Conselho de Ministros da União Europeia (incluindo aqui, sobretudo, o seu pilar comunitário da Comunidade Europeia)? Chamo a atenção para o facto de que as decisões comunitárias daquela instituição prevalecerem sobre o direito interno dos Estados-membro, e serem susceptíveis de aplicação e efeito directo. Isto significa, por outras palavras, que essas decisões nos são directamente destinadas e surtem efeitos práticos e concretos nas nossas vidas. Saber, por conseguinte, como são tomadas, é o mínimo que se pode admitir a quem é delas destinatário.

Quem ande um pouco pela ramagem do problema, afirmará de imediato que não há qualquer inconveniente, porque tudo se manterá como dantes. Se um pouco mais «apertado», o inquirido responderá, caso seja «versado» nas problemáticas comunitárias, que se aplicam as regras do Tratado de Nice. Bastaria, assim, abri-lo e ler as disposições aplicáveis às deliberações do Conselho.

Temo bem, contudo, que as coisas não sejam exactamente assim. E, por conseguinte, a quem quiser deslindar o enigma, repito, das formas de deliberação comunitária sobre matérias que se nos aplicam directamente, recomendaria a leitura dos documentos que enunciarei em seguida. Se, findo esse ciclópico trabalho, tiverem percebido alguma coisa, ficaria sinceramente admirado. Assim, os documentos de leitura obrigatória são estes:
- Tratado de Nice;
- Protocolo de Nice, anexo ao Tratado da União Europeia e aos Tratados que instituem as Comunidades Europeias, relativo ao alargamento da União Europeia;
- Declaração nº 20 de Nice, respeitante ao alargamento da União Europeia;
- Tratado de adesão da República Checa, da Estónia, de Chipre, da Letónia, da Lituânia, da Hungria, da Polónia, da Eslovénia e da Eslováquia, nomeadamente as disposições relativas ao Conselho;
- Tratado de adesão da Roménia e da Bulgária;
- Protocolo relativo às condições e regras de admissão da República da Bulgária e da Roménia à União Europeia;
- Acto relativo às condições de adesão da República da Bulgária e da Roménia e às disposições dos tratados em que se funda a União Europeia (que se aplica em substituição do anterior, caso o Tratado Constitucional não entre em vigor até 1 de Janeiro de 2007).

Isto significa que o problema actual da integração comunitária poderá colocar-se em relação a ela mesma, mas nunca quanto a eventuais instrumentos que clarifiquem o seu funcionamento. Podemos discutir se o caminho seguido é bom ou mau, conveniente ou inconveniente, e até concluir que nada disto nos interessa. Aí, teríamos, nós e qualquer Estado-membro que se queira desvincular da União, uma dificuldade acrescida: não existem normas nos tratados que expliquem como isso se faz, as célebres regras de secessão, bem como as responsabilidades que caberiam às partes. Por sinal, o Tratado Constitucional incluía-as pela primeira vez na História das Comunidades. Como clarificava o procedimento decisional que, note-se, está em vigor. Como estabelecia, com clareza, quais eram as competências que cabiam à União e aos Estados. Neste último aspecto, como as normas ou não existem nos tratados, ou as que existem são muito genéricas, essa matéria cabe à soberania dos Estados-membros (sobretudo aos maiores) e, em parte, à jurisprudência comunitária. Pode ser, por conseguinte, como tem aliás sido, objecto de atropelos provocados por decisões unilaterais dos Estados-membros, insusceptíveis de qualquer controlo democrático ou constitucional, à luz do célebre princípio da necessidade da extensão das competências comunitárias, plasmado no actual artigo 308º do Tratado da Comunidade Europeia.

Em conclusão, esta é a Europa comunitária em que vivemos. O Tratado Constitucional simplificava as coisas e torná-las-ia inteligíveis. Poderá não ser muito agradável o que lá se lê. Mas, o que lá se lê é o que já existe, sem que a maior parte das pessoas tenha a consciência disso. O que quer dizer que não será pelo facto de nos oferecem um espelho que ficamos mais ou menos feios, embora a possibilidade de nos reconhecermos tal qual somos, seja sempre uma vantagem para quem não queira andar enganado.

11 janeiro 2006

co-habitação

É um conceito típico do semipresidencialismo francês.
Significa que as duas polaridades do sistema - a Chefia de Estado e o Governo - estão simultaneamente confiadas a personagens que pertencem a famílias políticas e partidárias distintas. Implica, naturalmente, uma maior cautela, sobretudo da parte do Governo, na condução das políticas, já que este é responsável perante o Presidente, enquanto que o contrário não sucede (o Presidente só é politicamente responsável perante o eleitorado).
Curiosamente, em trinta anos de semipresidencialismo português, só agora a palavra parece ter entrado firmemente no nosso léxico político. Do ponto de vista liberal, todas as formas do poder público ser obrigado a controlar-se são boas notícias, pelo que, enquanto as famílias permanecerem distintas, podemos todos (até o Dr. Mário Soares) dormir sossegados.

vício

Ontem, um dos mais reputados jogadores da política portuguesa, o dr. Santana Lopes, voltou a jogo, numa longa e bem estudada prestação na SIC-Notícias. Fê-lo ao fim de alguns meses de jejum, depois de uma pesada derrota que lhe dizimou por completo as finanças, e o impediu de frequentar os casinos políticos e as suas salas de jogo durante quase um ano. Mas o vício fala sempre mais alto e ontem Santana regressou. Ao que parece, deram-lhe crédito imediato, a avaliar pelo tempo de antena e pelos comentadores expressamente deslocados para avaliarem a prestação.
Como está cientificamente demonstrado, a política possui um grau de viciação e habituação tóxica muito mais elevado do que qualquer outro jogo de sociedade, ou mesmo do que as drogas leves e duras. A necessidade de palco, de se sentir importante, de ter holofotes e microfones espetados na cara, de emitir opiniões a pedido sobre os temas mais luxuriantes, a adrenalina das eleições e das contagens de votos, dos discursos e dos comícios, as conspirações e a intriga, viciam quase de imediato, ao primeiro contacto, quem se lhes exponha. A dependência económica também é um factor importante, embora a maior parte dos especialistas clínicos não o considerem essencial neste tipo de patologia. A probabilidade de reincidência é elevadíssima, atingindo quase os 100%, mesmo em antigos jogadores afastados há muito tempo, por tratamentos ocupacionais alternativos (o exercício de uma profissão bem sucedida, por exemplo), ou o excesso de idade para se conservarem as necessárias aptidões para o jogo. Vejam-se, a título ilustrativo, os casos recentes de Aníbal Cavaco Silva e Freitas do Amaral, ou de Mário Soares e Manuel Alegre. António Guterres mantém-se sob observação numa clínica estrangeira, enquanto Paulo Portas, cujo elevado grau de viciação é publicamente conhecido, tem sido visto a rondar as portas de alguns casinos e, até, de salas de jogo clandestinas. Para além de ter voltado a fumar e a roer as unhas, hábitos de que se tinha conseguido afastar na sua passagem governativa.
O Ministro da Saúde, Correia de Campos, ele próprio um reincidente, já declarou que o seu governo segue o assunto co atenção, «visto tratar-se de uma doença que afecta milhares de portugueses, que não escolhe idades e, portanto, poderá transformar-se numa séria ameaça à saúde pública» Disse ainda que se o Estado dispusesse de mais verbas as aplicaria em clínicas de tratamento e em investigação científica de ponta. «Mas, infelizmente, as finanças estão como estão», disse. «Pelo menos, é o que me diz o meu colega da tutela que, por sinal, tem prestado algumas declarações menos felizes sobre a sustentabilidade do Estado, às quais o Sr. Primeiro-Ministro deveria estar mais atento», concluiu.

forma e conteúdo

Num «post» abaixo editado fiz uma referência à alínea b) do artigo 288º da CRP, que consagra, entre os limites materiais à sua revisão, a «forma republicana de governo», qualificando esta designação de «quase analfabeta», «não fora arcaica, oitocentista e jacobina». Alguns leitores indignaram-se, defenderam a legitimidade da tipologia, citaram em sua defesa a Constituição dos Estados Unidos da América, autores clássicos e contemporâneos, e mandaram-me estudar o assunto. Foi o que fiz esforçadamente ao longo dos últimos dias, tendo chegado às conclusões que passo a enunciar.

Existem, sem dúvida, uma enorme variedade de classificações das formas de governo. Desde a Antiguidade Clássica, com os gregos e romanos, aos nossos dias, não houve um só autor que versasse sobre política que não tenha cedido à tentação de o fazer. Convém, porém, apurar se essas classificações estão em dia e se são conformes à natureza do governo actual e da titularidade das suas funções.

É o que sucede, por exemplo, com a citada Constituição dos EUA, que data de 1787. Ou com as obras de Montesquieu e de outros clássicos. Nesta altura e até ao advento do constitucionalismo europeu, a dicotomia monarquia-república servia perfeitamente para distinguir e agrupar as principais formas de ordenação do poder político estadual. Na verdade, o exercício, ou a responsabilidade jurídico-política pelas funções tradicionais de governo - legislativa, política e, dentro desta, a administrativa – cabia ou a magistraturas funcionalmente autónomas dentro de Estados que não eram chefiados por um Rei, ou competiam a este último directamente, modelo largamente predominante na Europa.

Assim, sucede que até ao constitucionalismo oitocentista, o Rei era simultaneamente chefe de Estado e do governo, ainda que neste último caso, e ao longo do século XIX, delegasse frequentemente essa função num ministro nomeado por si. Nessa medida, é correcto afirmar-se que, por esta altura, a monarquia era uma forma de governo, para além de ser a própria forma que o Estado assumia, representada pela tipologia da sua chefia.

Ora, sucede que na transição do absolutismo para a monarquia constitucional, os monarcas deixaram de dispor de quaisquer poderes governativos, porque se entende e bem, que sendo a sua legitimidade hereditária e não democrática, eles não podem exercer poderes para os quais não foram mandatados pelos seus legítimos titulares – os cidadãos. Nessa medida, a monarquia deixou de ser uma forma de governo, embora possa servir como qualificativo da forma simbólica do Estado, representada pela sua chefia, em contraposição à república.

Assim, as formas, ou sistemas de governo (designação que prefiro, por realçar o aspecto dinâmico das relações entre os órgãos de soberania), considerando apenas aqueles que cabem nos regimes políticos (outra classificação a apurar) democráticos, que me parecem mais apropriados aos dias de hoje, são o parlamentarismo, o presidencialismo, o semipresidencialismo e o directório (reportando-se ao modelo suíço e não ao directório da Revolução Francesa). Cada um destes sistemas terá, naturalmente, as suas variantes. Quanto à distinção entre república e monarquia esta fica, assim, arredada para a forma do Estado.

Em conclusão, no que a nossa Assembleia Constituinte foi «quase analfabeta», não fora profundamente «arcaica, oitocentista e jacobina», foi em qualificar a forma de governo semipresidencialista que instituiu, como «forma republicana» e transformá-la em limite material da própria revisão constitucional. Por este último aspecto foi, também, jacobina. Por ter empregue uma designação vinda da I República (cujo espírito pairava pelos cadeirões e nos ares de S. Bento) foi arcaica e oitocentista: na verdade, quando se implantou a República o Rei já há muito não governava. E, já agora, foi insuportavelmente autoritária, ao supor poder impor ad eternum o nosso modelo formal de Estado.

10 janeiro 2006

importante

Referendo sobre a OTA e o TGV.
A primeira iniciativa cívica e política de grande importância a nascer na blogosfera. No Blasfémias. Parabéns.

estado


Caro Henrique,

O liberalismo, ao contrário do que diz, não nega, nunca negou, a existência do Estado. Menos ainda cai na ingenuidade de supor que ele esteja diminuído nos seus meios de intervenção e nos seus poderes de soberania. Pelo contrário, ele encontra-se mais forte do que nunca e mais intervencionista do que esteve alguma vez. Com a circunstância agravante de, ao fim de séculos de poder despótico e ilegítimo, se apresentar agora sob as vestes legitimadoras do sufrágio universal. Não existe, por conseguinte, qualquer utopia liberal neste domínio: não dizemos que o Estado acabou, mas que é necessário acabar com este Estado, se queremos preservar as nossas liberdades. Não afirmamos que a História acabou, nem achamos que o destino radioso da humanidade seja o capitalismo milenar. Sabemos bem (não se esqueça que Popper também nasceu na Áustria…) que o historicismo vale tanto quanto a astrologia. Peço-lhe, por conseguinte, que assentemos definitivamente neste ponto: conheço há anos suficientes a política, a história e os autores que descrevem uma e outra com realismo e seriedade, para não cair em falácias ou ficções.

Assim sendo, dir-lhe-ei que, para os liberais, o Estado não é forçosamente um mal em si mesmo. Mais: para qualquer liberal sensato (quem não for sensato não será, seguramente, liberal), o Estado é uma criação humana que respondeu a necessidades sentidas. Em «economês», tratou-se de um produto concebido para a satisfação de necessidades de mercado. Qualquer contratualista lhe diz isto, sem mais, nem menos. O ponto é, porém outro e muito diferente, e tem a ver com as razões, ou os fundamentos, que originaram esse particular modelo de organização política e comunitária. Para os liberais, elas residem na defesa dos direitos individuais. Da liberdade e da propriedade, esta entendida como condição sine qua non a primeira inexiste. Ora, porque o Estado contemporâneo se tem vindo a apropriar de funções de que não foi incumbido e que devem permanecer na esfera da subjectividade individual e da liberdade contratual dos cidadãos, a necessidade de o refrear, de o remeter à razão da sua existência originária, deve ser a prioridade de qualquer programa liberal. Porque, caro Henrique, ao invés do que V. afirma não existem «Estados “liberais”», ainda e mesmo que a adjectivação seja colocada entre comas. Para um defensor do realismo político como V. visivelmente é, esta perspectiva parece-me eivada de uma certa ingenuidade. Porque são os indivíduos e as comunidades sobre quem o Estado exerce o seu poder que têm de o suster. Não esqueça que, como lembrava Jouvenel, «l’Histoire est lutte de pouvoirs». Actualmente, esse conflito trava-se essencialmente entre o poder público e o poder privado dos cidadãos. É, sem dúvida, uma luta desigual, na qual a atitude liberal deverá ser a da intransigente defesa dos últimos, perante a prepotência do estatismo. Não fique à espera do advento de um Estado «amigo do cidadão», disposto a restituir-lhe os poderes que lhe furtou, sem uma sociedade civil que o obriga a fazê-lo. Essa, sim, seria uma perigosa utopia.

Como vê, caro Henrique, para os liberais o Estado não só é importante, como constitui o núcleo fundamental das suas preocupações. Quase diria que se o Estado não existisse, num mundo de ficção e de utopia, o liberalismo, ou a defesa da liberdade contra a coerção pública, seria muito provavelmente despiciendo. No entanto, esta óbvia constatação não deve fazer-nos inverter a perspectiva dos problemas, considerando que a sua solução reside na fonte. Por outras palavras, não devemos aceitar o Estado tal como ele hoje se nos apresenta, apenas por ele ser um dado de facto, objectivo e inegável. Combatê-lo, procurar diminui-lo, retirar-lhe o que não é seu e nunca lhe deveria ter sido cedido em momentos que são historicamente determináveis, é a vocação da cultura liberal. Nessa medida, a função do liberalismo é essencialmente pedagógica e ética, antes de ser política, a não ser que, como os marxistas, entendamos que não existe vida para além dela. Trata-se, deste modo, de tentar demonstrar que a esmagadora maioria das funções que o Estado Social desempenha podem, e devem, ser deixadas, com vantagem para todos, à liberdade individual e à respectiva liberdade contratual. De provar que o Estado cobra serviços de qualidade baixa a preços elevados, porque é um intermediário com interesses próprios que não são os dos cidadãos que diz representar. E que o faz de forma despótica, totalitária, sem sequer permitir, na maior parte dos casos, que as pessoas possam escolher em igualdade de circunstâncias entre o que oferece e o que poderia ser oferecido pela iniciativa privada. Fá-lo, sempre, afirmando o «interesse público» como prevalecente sobre os interesses privados, fazendo equivaler estes últimos aos egoísmos e a caprichos singulares, e os primeiros ao altruísmo das grandes causas. Estamos, então, perante a completa inversão da origem e dos fundamentos da comunidade política: os cidadãos servirem-na, ao invés de ela servir os cidadãos.

Acrescentarei apenas mais algumas linhas, para lhe dizer que o plano em que V. colocou o Estado na comunidade internacional me parece um pouco desfasado da realidade. O seu pressuposto é o do realismo estatista de Morgenthau, para quem os únicos agentes da comunidade internacional são os Estados, sendo a sua exclusiva preocupação o poder nacional, traduzido em ganhos e perdas objectivas. Acha, segundo me pareceu, que a globalização é resultado da acção consciente dos Estados, ou dos seus governantes, que nela mantêm interesses de puros ganhos de poder nacional. Não está longe, desculpe-me que lhe diga, da tese leninista da conspiração do capitalismo imperialista, ainda que a veja com agrado. A própria teoria de que a integração comunitária europeia, a que V. alude, e que é sem dúvida a origem da globalização dos dias de hoje, mais não terá sido do que uma maneira dos Estados da Europa Ocidental se precaverem contra o poder dos dois blocos da Guerra-Fria, no fundo, uma maneira original de não perderem e de adquirirem poder nacional, foi defendida por Morgenthau no seu Politics Among Nations. Está, hoje em dia, claramente ultrapassada. Até mesmo os neorealistas seus herdeiros, entre os quais Stanley Hoffmann, Robert Keohane e Andrew Moravcsik, sustentam que esse caso de integração regional começa a ultrapassar o conceito limitativo do Estado-Nação soberano e a constituir-se como uma realidade própria, ainda que com contornos que se encontram em definição. No mundo em que vivemos, a soberania individual não prevalece ainda sobre os poderes públicos estaduais. É um facto. Porém, ela começa já a dispor de outras instâncias a quem recorrer, para além das que pertencem ao Estado-Nação. Atenda, por exemplo, ao papel desempenhado pelo Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia e verá que, aí, já nem sempre é a «razão de Estado» que subsiste. Por outras palavras, se já não estamos na bipolaridade da Guerra-Fria, o mundo também não regressou ao tempo de Congresso de Viena.

Qual será, então, a atitude liberal perante a complexidade crescente do mundo em que vivemos? A mesma de sempre: colocar-se ao lado da defesa dos indivíduos e dos seus direitos, contra todas as formas de poder público que, de uma ou de outra maneira, reduzam a esfera da liberdade individual. Não há outra posição possível e, neste contexto, o modelo de Estado que marcou a nossa época, dotado de um imperium nunca antes imaginado, é inequivocamente o inimigo principal de qualquer sociedade que aspire à liberdade. Todos os meios que contribuam para a diminuição da sua soberania são, assim, muito bem vindos.

Cumprimento-o com estima e consideração,

09 janeiro 2006

portugal dos pequenitos

Por dever de ofício de uma amorosa paternidade tardia, dei ontem comigo, sábado à tarde, à porta do «Portugal dos Pequenitos», acompanhando a família, na cidade de Coimbra.
Eu tinha uma muito vaga ideia daquilo, reportada a uma longínqua visita que, em idênticas circunstâncias, fizera na companhia de meus pais, antes ainda do 25 de Abril.
Por alguma estranha razão, a ocasião não ficara gravada nas minhas memórias de infância. Umas vagas recordações de umas casitas em miniatura por onde a pequenada circulava, uma ideia de algum peso e solenidade – coisa bizarra num parque infantil -, mas, sobretudo, pretos, muitos pretos, ou melhor, muitas estátuas dos nativos das antigas colónias e alguma reprodução dos seus «habitats», foi o que mais se me reteve no espírito, ao longo destes trinta anos e muitos últimos anos.

O Parque foi concebido por Bissaya Barreto e projectado e executado por Cassiano Branco. Começou a ser construído em 1938, tendo aberto ao público em 1950, e está, ao que parece, fundamentalmente na mesma. Dividido em três corpos temáticos sucessivos que, uma vez ultrapassada uma porta castelar com dois pajens tocando corneta (o que custa a quase simbólica quantia de € 6,00 por adulto, paga em cash, na ausência de máquinas automáticas, a uma senhora claramente indisposta), se expõem do seguinte modo: um primeiro dedicado ao «Portugal Ultramarino» (onde estão as ditas estatuetas que me ficaram na memória), um segundo reservado ao «Portugal Monumental»; com algumas reproduções em miniatura de palácios e monumentos do continente; e, por fim, o «Portugal Metropolitano» doméstico, provinciano, ecom as várias habitações-tipo que, à época, caracterizavam Portugal. Em complemento a este último troço, um pequeno zoológico, simbolicamente composto pelos animaizinhos emblemáticos da portugalidade: uma ovelha, uma cabra, um porco (por sinal muito mal tratados) e um pombo. Os três primeiros, presos por correntes. O último, ao que se julga ainda com asas e difícil de amarrar, não se encontrava representado, senão pelo local que tinha o seu nome à porta.

Esta fabulosa síntese de um país que se queria um império constitui o melhor retrato histórico do Portugal de há cinquenta anos atrás e do que o país foi durante o século passado. Não por acaso, na terceira parte do Parque, naquela que reproduz o país continental, encontram-se, em cada uma das casas por onde corre a canalhada a abrir e a fechar portas e janelas, gravadas em azulejos da época algumas das mais atrozes máximas, sentenças e provérbios que a literatura e a imaginação nacional alguma vez produziram. Parecem ter sido seleccionadas criteriosamente, mesmo em autores onde as não julgaríamos possíveis. Continuam a ser lidas por pais e filhos, provavelmente com a mesma atenção de quando ali foram colocadas.

Alguns exemplos? Aqui vão: «O caminho da taberna é o caminho do Hospital», «O trabalho é o pae da felicidade. Deus dá sempre a quem trabalha» e «Não morre de fome quem é trabalhador», da vox populi; de Júlio Diniz, estas belas quadras: «Ó mãe, dá-me uma espada,/ Ouço da pátria a voz»/ «Ei-la! É imaculada/ Era a de teus avós»/ «-Pura a trarei, voltando/ Se não morrer alli»/ «Vae, disse a mãe, chorando,/ Eu rezarei por ti.»; de D. Francisco Manuel de Melo, esta apropriada sentença: «Do homem, a praça; da mulher, a casa»; de Camilo, a pérola seguinte: «Não há crianças mais crianças, do que as mães»; e, last but not least, na reprodução da «casa típica» de Évora, esta avisada sentença, a única, aliás, com o nome do autor devidamente apagado: «A vontade de obedecer, única escola para aprender a mandar». O nome do autor, repita-se, o único apagado é, obviamente, o de António de Oliveira Salazar, cujo espírito percorre, de resto, todo o Parque, desde a entrada à saída.

Espantosamente, o «Portugal dos Pequenitos» resistiu ao 25 de Abril. Com poucas alterações, tudo está como dantes: mais umas linhas nas lajes descritivas das casas das antigas colónias, explicando que estas, entretanto, se tornaram em países viçosos e independentes; uma placa comemorativa da visita do Presidente Chissano, em 1999, como que legitimando o valioso património que ali se encontra, e a rasura do nome do antigo Presidente de Conselho de Ministros. Entretanto, passaram-se mais de cinquenta anos sobre a inauguração do Parque. Salazar morreu, o «Estado Novo» caiu, deu-se uma revolução, Portugal aderiu às Comunidades, transformou-se, modernizou-se, evoluiu, ou seja, mudou profundamente.
Mudou mesmo?

07 janeiro 2006

para que serve o estado?

Segundo Vasco Pulido Valente, há vinte anos atrás, em 1984, numa crónica publicada no Diário de Notícias:

«Uma Casa Portuguesa

Um indivíduo anda aborrecido com o emprego que tem, ou precisa de emprego ou ambiciona, por razões óbvias, ganhar mais. As coisas correm-lhe cada vez pior e as empresas privadas não o querem. Esclarecidamente, o indivíduo pensa no Estado, a que supõe o dever de lhe dar uma ocupação e proventos compatíveis. Não encontra nada ou o que encontra não o satisfaz.
Deste fracasso o indivíduo retira a conclusão de que o Estado não cumpre cabalmente as suas funções. Os seus enormes talentos merecem com certeza ser usados e seriam com certeza usados por um Estado que se prezasse. O indivíduo concebe então o plano simples de consequir que o Estado reconheça a sua utilidade. Procura dentro de si sinais de distinção. Depressa descobre uma especialidade, um amor, uma causa. Digamos, por exemplo, a casa portuguesa.
A casa portuguesa típica, que lhe despertou sempre surtos de paixão, desaparece lentamente da paisagem. As câmaras não a protegem; a Fundação Gulbenkian ignora-a; o público despreza-a. A preservação da casa portuguesa constitui um interesse social, digno da atenção do Estado. Aliás, todos os interesses sociais são dignos da atenção do Estado. O indivíduo decide, portanto, persuadir o Estado a encarregá-lo de preservar a casa portuguesa, tão ameaçada pela incúria, por autarcas néscios e por emigrantes.
Convoca três amigos: dois arquitectos e um autoproclamado sociólogo, como ele convencidos da sua importância e carentes de uns dinheiros. Os quatro põem-se em campo. Trata-se de obter acesso a um ministro ou a um secretário de Estado, através de relações pessoais ou de influências partidárias. O ideal é escolhê-lo num departamento com objectivos tão etéreos e brumosos como a própria preservação da casa portuguesa: a Cultura, a Qualidade de Vida, a Família, o Ordenamento Teritorial, a Paz nas Consciências. Em rigor, qualquer serve, mas estes apreciam em particular os projectos fantásticos.
Imaginemos que o indivíduo e os três amigos se apoderam do ministro da Cultura. Tal ministro, principalmente se, como com frequência sucede, é analfabeto ou quase, jamais se atreverá a manifestar indiferença seja pelo que for que se apresente como Cultura (com C grande). No «Botequim», Natália Correia vela. A esperteza reside em que tudo lhe pode ser apresentado como Cultura, até Natália Correia e a preservação da casa portuguesa. Intimidado, aflito, prevendo críticas devastadoras à sua relutância em preservar a casa portuguesa, o ministro rende-se. Discretamente, e supondo assim desembaracar-se do sarilho, nomeia por despacho uma Comissão para a Preservação da Casa Portuguesa, com o indivíduo e os três amigos, que passam a receber a remuneração mensal de cento e cinquenta contos, para o chefe,e de cem cada, para os comparsas.
Ganhou-se a primeira balalha. O indivíduo adquiriu uma posição oficial. O próximo passo consiste em montar cerco ao gabinete do ministro para lhe subtrair «espaço», isto é instalações. Como preservar a casa portuguesa nos corredores ou nos cafés? Sem telefones? Sem um sítio para guardar papéis e atender pessoas? Os argumentos parecem racionais, a reivindicação justa. Comprometido no princípio, o ministro volta a render-se. A Comissão para a Preservação da Casa Portuguesa instala-se em duas assoalhadas, num canto obscuro do ministério.
Daí reclama telefones, um contínuo (para recados), uma escriturária-dactilógrafa e um técnico de terceira, destacados de outros serviços ou contratadoos de fresco entre familiares e indigentes. Como recusar pedidos tão lógicos e triviais? Existe a Comissão, existem duas assoalhadas; o resto segue-se. O trabalho vai, enfim, começar a sério.
A Comissão produz, após esforços esplêndidos, um documento de dezassete páginas com o título: «A Preservação da Casa Portuguesa: Vectores de uma Problemática, a NÍvel Urbano e Rural». Forte de semelhante obra, entra na matéria. Pouco a pouco, estende os seus tentáculos. Ocorre-lhe desde logo que os seus objectivos são intradepartamentais. A casa portuguesa também é da responsabilidade dos ministérios das Obras Públicas e Habitação, da Qualidade de Vida e dos Assuntos Sociais. A Comissão exige, por consequência, que se forme uma subcomissão com «representantes qualificados dessas áreas», e que se lhe atribuam os respectivos subsídios. Requisita, evidentemente, um carro para as tarefas de coordenação (e para ir a Sintra aos domingos). Mas não se esquece nem das autarquias, nem dos emigrantes. Cheios de zelo, os seus membros partem para a província, enquanto o chefe, com mais majestade, «se desloca» às colónias portuguesas no estrangeiro, com o objectivo de «manter o perfil» das nossas queridas aldeias.
Entretanto, o chefe já informou o ministro da impossibilidade física de prosseguir estas enérgicas actividades em duas meras assoalhadas. Em dura luta com várias direcções-gerais, institutos e gabinetes, a Comissão acaba por conquistar mais cinco e aumenta o seu pessoal de sete para vinte e sete. Chegou a altura de se ocupar da decisiva questão dos «contactos internacionais». A inutilidade notória do exercício, assegura que a Comissão brilhará. No Conselho da Europa, na UNESCO, em viagens diplomáticas à Assíria ou ao Daomé, o chefe e os sócios discutirão moções, aprovarão recomendações, estudarão acordos de intercâmbio, comerão jantares e tirarão retratos. O mundo ficará sabendo que Portugal, país civilizado, se preocupa com a preservação da casa portuguesa. O orçamento da Comissão subiu de três mil contos por ano para cinquenta mil, o que a torna uma coisa digna de respeito e, pelo menos, de uma condecoração da Embaixada Francesa.
A Comissão, porém, é precária. Não tem lei orgânica e não tem quadro. Acima de tudo, não tem quadro. Os seus membros e empregados vivem no risco de despedimento, o que compreensivelmente os perturba, impedindo-os de trabalhar como gostariam. Para eles, os seus inestimáveis serviços justificam, mais, clamam, que lhes seja concedida segurança e aposentadoria. O ministro da Cultura entende esta angústia, porque aprecia que os seus subordinados o estimem. O ministro das Finanças, que não entra no ministério da Cultura, não se comove tanto. Mas é-lhe explicado o alcance da preservação da casa portuguesa, a sua indispensabilidade, o prestígio que a Comissão adquiriu em Bogotá e em Munique, e ele contrariadamente cede.
A Comissão transforma-se, deste modo, em Instituto papa a Preservação da Casa Portuguesa, com um quadro de oitenta lugares, sendo cinquenta instantaneamente preenchidos. Muda de instalações, recruta telefonistas, motoristas, contínuos, técnicos, conselheiros, assessores. Gasta agora duzentos mil contos. O chefe inscreve-se no PSD e fala-se discretamente dele para secretário de Estado, em parte por causa de um livro de excessivo mérito chamado «A Preservação da Casa Portuguesa: Vectores de Uma Problemática, a Nível Urbano e Rural».
A moral da história é a seguinte: se amanhã desaparecessem duzentos mil funcionários públicos, ninguém, excepto os próprios, daria por nada. Ou daria - daria porque pagava metade dos impostos.»

Diário de Notícias, 5 de Fevereiro de 1984.