I. Marcello José das Neves Alves Caetano é, simultaneamente, a personagem política da História de Portugal que mais o influenciou nos últimos cinquenta anos e por quem o país menos se parece interessar. Sobre Salazar escreveram-se e escrevem-se milhares de páginas, sendo que todas as análises sobre o Estado Novo se centram exclusivamente nele. Sobre Marcello, habitualmente qualificado como uma figura menor e final do regime, pouco, ou quase nada, se tem dito ou escrito. Marcello foi, é certo, o seu coveiro oficial, tendo-lhe presidido às exéquias. Por isso, ficou para a nossa memória colectiva como alguém que não esteve à altura das suas responsabilidades e dos acontecimentos: nem manteve o regime e o status quo que herdou, nem foi capaz de o substituir por um modelo diferente. Ficou-se de permeio e, em política, isso é quase sempre fatal. Neste caso, saiu pela porta pequena, sem deixar saudades aos "amigos" ou respeito e temor aos inimigos. Mas, também, está ainda muito presente na vida política nacional, nomeadamente junto da classe política que nos tem governado desde o 25 de Abril. De facto, sobrevivem ainda, em lugares destacados, os seus muitos afilhados e colaboradores políticos, os «Marcellos» de baptismo e os que o Professor lançou já depois de consumado esse rito católico. Por essa razão, também, aqueles que poderiam evocar a sua memória – os filhos políticos do homem que, tendo embora enviuvado apenas em 1971, desde cedo padeceu dos males da solidão que a prolongada doença de sua mulher Teresa lhe acarretara - não têm estado em posição confortável para o fazer.
Na verdade, nestes últimos trinta anos, muitos foram os governantes do CDS, do PSD e até do PS que Marcello lançou ou que, pelo menos, não impediu que surgissem na ribalta política. E, para além das figuras mais mediáticas colocadas em lugares de exposição e visibilidade pública, subsistiu ao seu fim político uma gigantesca máquina da administração do Estado que ele ajudou a formar, fosse pela criação de uma «elite» tecnocrática e burocrática de topo, que permaneceu no novo regime e na administração das grandes empresas públicas, fosse pela marca indelével do seu pensamento sobre a teoria do Estado e da administração pública deixou sobre o Portugal contemporâneo.
II. É certo que Marcello Caetano teve e manteve o perfil da personagem trágica que sempre matiza aqueles que se atrevem a colocar-se entre a necessária salvaguarda da memória do passado e a emergência de um futuro inevitável. Com a agravante, no seu caso, de ter sido um homem inteligente e lúcido, o que lhe permitia perceber a situação real do país e do mundo, bem como a imprescindibilidade das transformações a operar. A formulação da sua estratégia, expressa na frase com que se apresentou ao país da «renovação na continuidade», permitia acalentar a esperança dos passadistas, daqueles que o descreviam ainda «mais duro do que o outro, quando se irritava», e a dos que julgavam que o futuro estava disponível sem sacrifícios ou concessões. Na verdade, Marcello Caetano nunca se chegou a «irritar». Nem quando, em 25 de Abril de 1974, saiu do palco dentro de uma chaimite apupada por populares, talvez muitos dos mesmos que alguns dias antes, no dia 1 do mesmo mês do mesmo ano, o haviam aplaudido no Estádio de Alvalade. Marcello não foi nem cobarde, nem tíbio. Se o tivesse sido, não teria aceitado suceder a Salazar, ou ter-se-ia demitido face ás dificuldades que encontrou no seu breve percurso da chefia de governo. Foi, isso sim, politicamente tímido, porque não fez o que intimamente gostaria de ter feito, embora dificilmente qualquer outro o tivesse conseguido fazer em idênticas circunstâncias.
III. Do que Marcello Caetano não se poderá queixar foi do país que encontrou em 26 de Setembro de 1968, ao aceitar a Presidência interina do Conselho de Ministros, em substituição de Oliveira Salazar, definitivamente inutilizado, deitado numa cama, vitimado por uma grave e irrecuperável hemorragia cerebral. Ele mesmo o disse, já em 1973, quase em modo de justificação pelo fracasso intuído da sua acção governativa, numa entrevista concedida a Alçada Baptista: «Um governante não chega ao poder para lhe ser entregue uma folha de papel em branco onde escreva o que quiser».
E as folhas escritas que Marcello encontrou não eram de fácil leitura. Para além de ser uma autocracia inserida na Europa Ocidental que rejeitava as regras elementares da democracia política, Portugal não tinha uma visão estratégica sobre o seu futuro. A herança de Salazar consistia em tentar manter um país que já não correspondia ao seu tempo: isolado do mundo, afastado da geopolítica bipolar, suporte de um império africano que verdadeiramente nunca chegara a existir. Marcello que desde muito jovem militara na direita tradicionalista, católica e antiliberal do Integralismo Lusitano (foi redactor-fundador do periódico nacionalista «Ordem Nova»), cedo aderiu ao regime corporativo da Constituição de 1933, na feitura da qual, de resto, participou. Nele tomou lugares de destaque, na Mocidade Portuguesa, na União Nacional e na Câmara Corporativa (à qual chegou a presidir) e foi sendo visto, sobretudo dadas as posições críticas a Salazar, tomadas antes e depois de ser definitivamente afastado do governo em 1958, como o chefe da ala crítica de um regime que nunca abjurou. Ideologicamente, encontrava-se dividido entre a repugnância pelo regime dos partidos, provocada pela partidocracia autofágica da I República, e a admiração pelo sistema democrático inglês que, contudo, ele julgava próprio e exclusivo dessa notável nação, mas insusceptível de boa aplicação nos países latinos, como Portugal. Não queria, porém, nem que Portugal continuasse «orgulhosamente só», nem que deixasse de respeitar as regras políticas comuns à civilização ocidental onde, como ninguém, se sentia integrado. Ao longo da sua relação bivalente que, desde sempre, manteve com Salazar, nunca se cansou de censurar a existência de uma polícia política (que ele dizia ser prova não da força, mas da fraqueza do regime), ou a falta de respeito do governo pela instituição universitária, que o faria abandonar a reitoria da Universidade de Lisboa após a crise académica de 62. Quando chegou à chefia do governo, tratou de iniciar um processo de renovação da classe política, abrindo-a a quadros jovens formados na democracia, lato sensu, liberal, arejou o regime permitindo alguma liberdade de expressão (a censura, enquanto professor universitário, repugnava-o firmemente), tentou refrear a impetuosidade da polícia política (que não dependia exclusivamente de si, como chefe de Governo), aproximou o país de economia de mercado e da CEE, assinando com ela, em 1972, um acordo de livre-câmbio que permitia a Portugal trocar produtos com a Comunidade nas mesmas condições dos países da EFTA, e continuou a política de abertura económica ao exterior, iniciada no fim da década de 40, com a adesão de Portugal à OCDE. No fim da década de 60 e nos primeiros anos da seguinte, Portugal, embora suportasse o esforço de guerra em África, crescia a uma média anual de 6%.
IV. Não será, porém, correcto, supor-se que Marcello não foi mais longe no governo apenas devido à pressão feita pelos chamados «ultras», desde o afastamento (68) e a morte (70) de Salazar encostados ao Presidente da República e a alguns sectores das Forças Armadas. É evidente que o chefe do Governo caminhava, desde a primeira hora, sobre o fio-da-navalha, entre os liberais e os conservadores, e que nunca manteve boas relações com os pretorianos do regime, como o demonstra o conflito, que lhe foi fatal em 58, com Santos Costa. É certo que, mais tarde, a questão ultramarina lhe imporia «trabalhos ciclópicos», como ele costumava dizer e fê-lo, pelo menos na aparência, repensar a política de descentralização em favor da de integração. É claro, também, que a visão que tinha da geopolítica do seu tempo já não era a de Salazar, para quem o Concerto Europeu continuava a pautar o equilíbrio das relações internacionais. Marcello Caetano estava bem consciente que o Ultramar português era objecto de cobiça das grandes potências, como, de resto, o tinha sido já, em parte, no fim do século XIX, e que até por isso não era possível nem útil manter uma política de neutralidade. No entanto, e apesar de ter defendido em 1961, junto do então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, que Portugal se transformasse num Estado federal, abandonando o modelo de Estado unitário que considerava caduco, quando assumiu a chefia do governo nunca disse claramente ao país como pretendia resolver a questão ultramarina: se resistindo militarmente, se negociando a paz baseada numa independência progressiva e diferenciada conforme os territórios, se apostando numa federação de laços exíguos, como a Commonwealth britânica, com a qual sonhara num passado muito próximo. Hoje, subsistem as lendas sobre as suas reais intenções. Se teria, ou não, negociado directamente com os movimentos de libertação e o quê. Se prepararia a substituição de Américo Thomaz, para enfraquecer a posição institucional dos «ultras» no aparelho do regime, promovendo as verdadeiras reformas de que o país precisava a partir daí. Se teve conhecimento antecipado do 25 de Abril, não lhe oferecendo resistência na esperança de que os seus protagonistas entendessem que ele estava no caminho certo e o apoiassem afastando Thomaz.
V. O desfecho desta história, todos o conhecemos. Foi, de longe, o pior: a liberdade imposta pelas armas, a descolonização feita ao sabor dos interesses soviéticos e a destruição do aparelho produtivo nacional, provocada pelas nacionalizações de 1975. Que Marcello Caetano poderia ter feito mais e melhor, não restam dúvidas. Que a impossibilidade efectiva de o ter feito foi a grande tragédia do Portugal contemporâneo, resulta uma evidência. E que tudo isso se deveu à irresponsabilidade de Salazar, que deveria ter tido a consciência – como Franco teve – de que a sucessão de um governo tão longo e tão marcante como o seu só pode fazer-se com a mudança do regime, também parece pacífico: quem se arroga a governar o país autocraticamente durante quarenta anos, como ele fez, devia pensar no dia que se segue ao seu inevitável fim. Salazar não teve grandeza suficiente para tanto. Foi pena.
VI. Ao longo dos seus quase seis anos de governação, dois em regime tutorial e quatro efectivos, Marcello Caetano pediu insistentemente que lhe «dessem tempo». Mas, em política como, de resto, na vida, o tempo é exíguo, escasso e nunca se sabe quando termina. A falta da noção de que o seu próprio tempo estaria a esgotar-se foi, provavelmente, o seu grande erro político, pelo qual pagou com a indiferença ou a má vontade que a História tem, ainda hoje, para com ele. Morreu triste e desolado, mas livre como sempre fora ao longo da vida, no dia 26 de Outubro de 1980, em Terras de Vera-Cruz, após ter rejeitado o conselho do seu médico de aplicação de um peacemaker cardíaco que, seguramente, lhe garantiria mais alguns anos. Marcello achou, nessa altura, que nada mais lhe restava fazer e que o seu tempo chegara ao fim. Dessa vez, não quis mais tempo para si.