30 dezembro 2005

sabática

Até ao próximo ano.
Boas entradas e um excelente 2006 para todos os que têm a amabilidade de nos visitar.
Uma palavra de amizade especial aos nossos confrades e amigos dos blogues Blasfémias, O Insurgente, Blue Longe e da casa-comum que é a Causa Liberal.
A todos um abraço.

29 dezembro 2005

juan de mariana: um «libertarian» na igreja romana

Juan de Mariana (1536-1624), padre jesuíta espanhol, foi um percursor do liberalismo clássico e, até mesmo, do pensamento «libertarian» norte-americano.
Contemporâneo de Luís de Molina e de Francisco Suárez, os dois padres jesuítas mais conhecidos da Segunda Escolástica, ou Escolástica Tardia, estudou em Alcalá, Roma e na Sicília e ensinou teologia, aos trinta e três anos de idade, na Universidade de Paris. Foi, porém, muito mais longe do que aqueles seus dois contemporâneos na defesa do individualismo e da liberdade. Escreveu, ao longo dos seus oitenta e oito anos de vida, quatro obras fundamentais: Historiæ de rebus Hispaniæ (1592); De rege et regis institutione (1598); De ponderibus et mensuris (1599); De monetae mutatione (1605). A sua contribuição para o pensamento liberal terá sido mais evidente nas três últimas obras, sendo que a primeira dessas foi escrita a pedido do «seu» rei, Filipe II de Espanha e I de Portugal. Mas, como nota Rothbard (no Austrian Perspective on the History of Economics Thought) com alguma ironia, apesar da «encomenda», o poder régio não se saiu muito bem da análise feita nesse livro.
Na verdade, Mariana foi, para a época, um revolucionário. Por várias e boas razões. Entre elas, o facto de se não ter limitado a seguir a doutrina assente pela Escolástica de Salamanca do tiranícidio, isto é, o direito natural de um povo tiranizado pelo seu monarca poder depô-lo, tendo-a ultrapassado e aprofundado os seus fundamentos. Desde logo, Mariana considerava a propriedade privada como um direito absoluto, insusceptível de ser posto em causa, por via directa ou indirecta, pelo poder político, ou seja, pelos monarcas. No caso dos meios indirectos de ataque à propriedade privada encontrava os «impostos opressivos» e a inflação provocada pelo governo, nomeadamente pelo aumento da moeda em circulação e a sua consequente desvalorização para sustentar o despesismo público. Mariana considera que qualquer um destes casos remete o poder régio para a tirania e, em consequência, legitima o tiranicídio, isto é, o afastamento violento do rei pelo povo, inclusivamente condenando-o à pena capital.
Por outro lado, enquanto que os autores escolásticos pressupunham que o tiranicídio resultasse de uma inequívoca declaração da vontade do povo, Mariana considera que este pode ser um acto individual sem consentimento público e, ainda assim, resultar legítimo. Aconselhava, porém, que se tentasse, primeiro, obter esse consentimento e, caso ele não fosse possível dada a tirania régia eventualmente não permitir a livre expressão, ao menos o conselho de alguns homens experientes e imparciais. Contudo, como se acaba de ver, o tiranicídio não carecia decididamente de legitimação democrática e popular, na doutrina deste padre jesuíta.
É, também, em Juan de Mariana que encontramos os fundamentos, mais tarde repetidos por Locke, da origem pactícia da sociedade política: a defesa da propriedade privada e dos direitos individuais. Como, igualmente, a legitimidade popular do poder político, o que permitiria a sua natural recuperação pelos governados, no caso de falta de cumprimento contratual dos governantes. Estes, em especial o Rei, deviam obediência ao princípio da igualdade perante a lei moral e a lei do Estado. Caso as desrespeitassem, transformar-se-iam em tiranos, sendo legítima a sua deposição violenta.

A aplicação do seu pensamento liberal à economia política consta, como já foi referido, principalmente Monetae Mutatione. Esta obra haveria, de resto, de o levar ao cárcere em Setembro de 1603, com 73 anos de idade, por determinação de Filipe III. Julgado pela Inquisição, não cedeu em nenhuma das suas afirmações e assumiu tudo o que escrevera. O seu prestígio leva à interferência directa do Papa no julgamento, tendo sido libertado quatro meses mais tarde, sem condenação.
O que escreveu, então, nessa obra Juan de Mariana, que provocou a ira do seu soberano e a perseguição das autoridades? Em primeiro lugar, que o Rei, nenhum Rei, é proprietário dos seus súbditos e dos seus patrimónios. Em consequência, a criação e aplicação de tributos só poderá ser feita com o consentimento destes últimos, já que se trata sempre de uma apropriação de parte da propriedade privada dos visados. Não admite, também, a «quebra da moeda» por decisão régia, isto é, a diminuição do valor metálico das moedas, pela sua fundição e nova emissão com menos peso, ou, eventualmente, menos quantidade dos metais mais nobres, no caso das moedas compostas (no seu tempo, em Espanha, esta prática era frequente na chamada «monedas de vellón», compostas de prata e de cobre. Até ao século XVI este tipo de moeda foi sempre estável. A partir daí, começaram a ser refundidas e a prata desapareceu quase por completo, ficando as moedas a ser de cobre). Daqui resultaria a inflação, sobre a qual o padre escreveria: «Solo un insensato intentaria separar estos valores de modo que el precio legal difiriera del natural. Estúpido, qué digo, malvado el gobernante que ordena que algo que la gente valora, digamos, en cinco se venda por diez». Para evitar a inflação e a tentação régia de «quebrar a moeda» para equilibrar as contas públicas, Mariana recomenda contenção nas despesas do Rei e da Corte (o que, como se imagina, enfureceu toda a gente…), assim como evitar guerras desnecessárias ou manter possessões territoriais distantes e sem utilidade.

Juan de Mariana foi um liberal e um percursor dos clássicos e é, também, entre outros, um excelente exemplo para contrariar os fanatismos obscurantistas que pretendem reduzir a instituição que é a Igreja Católica, a sua História e os homens que a fizeram, nas perseguições da Inquisição.

Sobre Juan Mariana, consultar:
Instituto Juan se Mariana
Juan de Mariana: The Influence of the Spanish Scholastics, pelo Prof. Doutour Jesus Huerta de Soto

28 dezembro 2005

os filhos do viúvo

I. Marcello José das Neves Alves Caetano é, simultaneamente, a personagem política da História de Portugal que mais o influenciou nos últimos cinquenta anos e por quem o país menos se parece interessar. Sobre Salazar escreveram-se e escrevem-se milhares de páginas, sendo que todas as análises sobre o Estado Novo se centram exclusivamente nele. Sobre Marcello, habitualmente qualificado como uma figura menor e final do regime, pouco, ou quase nada, se tem dito ou escrito. Marcello foi, é certo, o seu coveiro oficial, tendo-lhe presidido às exéquias. Por isso, ficou para a nossa memória colectiva como alguém que não esteve à altura das suas responsabilidades e dos acontecimentos: nem manteve o regime e o status quo que herdou, nem foi capaz de o substituir por um modelo diferente. Ficou-se de permeio e, em política, isso é quase sempre fatal. Neste caso, saiu pela porta pequena, sem deixar saudades aos "amigos" ou respeito e temor aos inimigos. Mas, também, está ainda muito presente na vida política nacional, nomeadamente junto da classe política que nos tem governado desde o 25 de Abril. De facto, sobrevivem ainda, em lugares destacados, os seus muitos afilhados e colaboradores políticos, os «Marcellos» de baptismo e os que o Professor lançou já depois de consumado esse rito católico. Por essa razão, também, aqueles que poderiam evocar a sua memória – os filhos políticos do homem que, tendo embora enviuvado apenas em 1971, desde cedo padeceu dos males da solidão que a prolongada doença de sua mulher Teresa lhe acarretara - não têm estado em posição confortável para o fazer.
Na verdade, nestes últimos trinta anos, muitos foram os governantes do CDS, do PSD e até do PS que Marcello lançou ou que, pelo menos, não impediu que surgissem na ribalta política. E, para além das figuras mais mediáticas colocadas em lugares de exposição e visibilidade pública, subsistiu ao seu fim político uma gigantesca máquina da administração do Estado que ele ajudou a formar, fosse pela criação de uma «elite» tecnocrática e burocrática de topo, que permaneceu no novo regime e na administração das grandes empresas públicas, fosse pela marca indelével do seu pensamento sobre a teoria do Estado e da administração pública deixou sobre o Portugal contemporâneo.

II. É certo que Marcello Caetano teve e manteve o perfil da personagem trágica que sempre matiza aqueles que se atrevem a colocar-se entre a necessária salvaguarda da memória do passado e a emergência de um futuro inevitável. Com a agravante, no seu caso, de ter sido um homem inteligente e lúcido, o que lhe permitia perceber a situação real do país e do mundo, bem como a imprescindibilidade das transformações a operar. A formulação da sua estratégia, expressa na frase com que se apresentou ao país da «renovação na continuidade», permitia acalentar a esperança dos passadistas, daqueles que o descreviam ainda «mais duro do que o outro, quando se irritava», e a dos que julgavam que o futuro estava disponível sem sacrifícios ou concessões. Na verdade, Marcello Caetano nunca se chegou a «irritar». Nem quando, em 25 de Abril de 1974, saiu do palco dentro de uma chaimite apupada por populares, talvez muitos dos mesmos que alguns dias antes, no dia 1 do mesmo mês do mesmo ano, o haviam aplaudido no Estádio de Alvalade. Marcello não foi nem cobarde, nem tíbio. Se o tivesse sido, não teria aceitado suceder a Salazar, ou ter-se-ia demitido face ás dificuldades que encontrou no seu breve percurso da chefia de governo. Foi, isso sim, politicamente tímido, porque não fez o que intimamente gostaria de ter feito, embora dificilmente qualquer outro o tivesse conseguido fazer em idênticas circunstâncias.

III. Do que Marcello Caetano não se poderá queixar foi do país que encontrou em 26 de Setembro de 1968, ao aceitar a Presidência interina do Conselho de Ministros, em substituição de Oliveira Salazar, definitivamente inutilizado, deitado numa cama, vitimado por uma grave e irrecuperável hemorragia cerebral. Ele mesmo o disse, já em 1973, quase em modo de justificação pelo fracasso intuído da sua acção governativa, numa entrevista concedida a Alçada Baptista: «Um governante não chega ao poder para lhe ser entregue uma folha de papel em branco onde escreva o que quiser».
E as folhas escritas que Marcello encontrou não eram de fácil leitura. Para além de ser uma autocracia inserida na Europa Ocidental que rejeitava as regras elementares da democracia política, Portugal não tinha uma visão estratégica sobre o seu futuro. A herança de Salazar consistia em tentar manter um país que já não correspondia ao seu tempo: isolado do mundo, afastado da geopolítica bipolar, suporte de um império africano que verdadeiramente nunca chegara a existir. Marcello que desde muito jovem militara na direita tradicionalista, católica e antiliberal do Integralismo Lusitano (foi redactor-fundador do periódico nacionalista «Ordem Nova»), cedo aderiu ao regime corporativo da Constituição de 1933, na feitura da qual, de resto, participou. Nele tomou lugares de destaque, na Mocidade Portuguesa, na União Nacional e na Câmara Corporativa (à qual chegou a presidir) e foi sendo visto, sobretudo dadas as posições críticas a Salazar, tomadas antes e depois de ser definitivamente afastado do governo em 1958, como o chefe da ala crítica de um regime que nunca abjurou. Ideologicamente, encontrava-se dividido entre a repugnância pelo regime dos partidos, provocada pela partidocracia autofágica da I República, e a admiração pelo sistema democrático inglês que, contudo, ele julgava próprio e exclusivo dessa notável nação, mas insusceptível de boa aplicação nos países latinos, como Portugal. Não queria, porém, nem que Portugal continuasse «orgulhosamente só», nem que deixasse de respeitar as regras políticas comuns à civilização ocidental onde, como ninguém, se sentia integrado. Ao longo da sua relação bivalente que, desde sempre, manteve com Salazar, nunca se cansou de censurar a existência de uma polícia política (que ele dizia ser prova não da força, mas da fraqueza do regime), ou a falta de respeito do governo pela instituição universitária, que o faria abandonar a reitoria da Universidade de Lisboa após a crise académica de 62. Quando chegou à chefia do governo, tratou de iniciar um processo de renovação da classe política, abrindo-a a quadros jovens formados na democracia, lato sensu, liberal, arejou o regime permitindo alguma liberdade de expressão (a censura, enquanto professor universitário, repugnava-o firmemente), tentou refrear a impetuosidade da polícia política (que não dependia exclusivamente de si, como chefe de Governo), aproximou o país de economia de mercado e da CEE, assinando com ela, em 1972, um acordo de livre-câmbio que permitia a Portugal trocar produtos com a Comunidade nas mesmas condições dos países da EFTA, e continuou a política de abertura económica ao exterior, iniciada no fim da década de 40, com a adesão de Portugal à OCDE. No fim da década de 60 e nos primeiros anos da seguinte, Portugal, embora suportasse o esforço de guerra em África, crescia a uma média anual de 6%.

IV. Não será, porém, correcto, supor-se que Marcello não foi mais longe no governo apenas devido à pressão feita pelos chamados «ultras», desde o afastamento (68) e a morte (70) de Salazar encostados ao Presidente da República e a alguns sectores das Forças Armadas. É evidente que o chefe do Governo caminhava, desde a primeira hora, sobre o fio-da-navalha, entre os liberais e os conservadores, e que nunca manteve boas relações com os pretorianos do regime, como o demonstra o conflito, que lhe foi fatal em 58, com Santos Costa. É certo que, mais tarde, a questão ultramarina lhe imporia «trabalhos ciclópicos», como ele costumava dizer e fê-lo, pelo menos na aparência, repensar a política de descentralização em favor da de integração. É claro, também, que a visão que tinha da geopolítica do seu tempo já não era a de Salazar, para quem o Concerto Europeu continuava a pautar o equilíbrio das relações internacionais. Marcello Caetano estava bem consciente que o Ultramar português era objecto de cobiça das grandes potências, como, de resto, o tinha sido já, em parte, no fim do século XIX, e que até por isso não era possível nem útil manter uma política de neutralidade. No entanto, e apesar de ter defendido em 1961, junto do então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, que Portugal se transformasse num Estado federal, abandonando o modelo de Estado unitário que considerava caduco, quando assumiu a chefia do governo nunca disse claramente ao país como pretendia resolver a questão ultramarina: se resistindo militarmente, se negociando a paz baseada numa independência progressiva e diferenciada conforme os territórios, se apostando numa federação de laços exíguos, como a Commonwealth britânica, com a qual sonhara num passado muito próximo. Hoje, subsistem as lendas sobre as suas reais intenções. Se teria, ou não, negociado directamente com os movimentos de libertação e o quê. Se prepararia a substituição de Américo Thomaz, para enfraquecer a posição institucional dos «ultras» no aparelho do regime, promovendo as verdadeiras reformas de que o país precisava a partir daí. Se teve conhecimento antecipado do 25 de Abril, não lhe oferecendo resistência na esperança de que os seus protagonistas entendessem que ele estava no caminho certo e o apoiassem afastando Thomaz.

V. O desfecho desta história, todos o conhecemos. Foi, de longe, o pior: a liberdade imposta pelas armas, a descolonização feita ao sabor dos interesses soviéticos e a destruição do aparelho produtivo nacional, provocada pelas nacionalizações de 1975. Que Marcello Caetano poderia ter feito mais e melhor, não restam dúvidas. Que a impossibilidade efectiva de o ter feito foi a grande tragédia do Portugal contemporâneo, resulta uma evidência. E que tudo isso se deveu à irresponsabilidade de Salazar, que deveria ter tido a consciência – como Franco teve – de que a sucessão de um governo tão longo e tão marcante como o seu só pode fazer-se com a mudança do regime, também parece pacífico: quem se arroga a governar o país autocraticamente durante quarenta anos, como ele fez, devia pensar no dia que se segue ao seu inevitável fim. Salazar não teve grandeza suficiente para tanto. Foi pena.

VI. Ao longo dos seus quase seis anos de governação, dois em regime tutorial e quatro efectivos, Marcello Caetano pediu insistentemente que lhe «dessem tempo». Mas, em política como, de resto, na vida, o tempo é exíguo, escasso e nunca se sabe quando termina. A falta da noção de que o seu próprio tempo estaria a esgotar-se foi, provavelmente, o seu grande erro político, pelo qual pagou com a indiferença ou a má vontade que a História tem, ainda hoje, para com ele. Morreu triste e desolado, mas livre como sempre fora ao longo da vida, no dia 26 de Outubro de 1980, em Terras de Vera-Cruz, após ter rejeitado o conselho do seu médico de aplicação de um peacemaker cardíaco que, seguramente, lhe garantiria mais alguns anos. Marcello achou, nessa altura, que nada mais lhe restava fazer e que o seu tempo chegara ao fim. Dessa vez, não quis mais tempo para si.

«quanto mais me bates...»

Reina a completa obtusidade na campanha eleitoral de Mário Soares e do PS. Agora, como já não fosse suficiente o efeito Alegre, todos os dias os seus responsáveis parecem empenhados em aumentar a votação de Cavaco Silva. Sempre que alguém afirma ou insinua que o putativo futuro Presidente da República se irá intrometer nos assuntos do governo, está a dar uma alegria a milhões de portugueses.
Se os marketeiros do PS ainda não perceberam que o que os portugueses estão à espera, desde a morte de D. Sebastião, é de alguém que «ponha isto na ordem», este governo ou outro qualquer, ainda não entenderam bem como funciona este país.
Na noite das eleições irão provavelmente compreender.

27 dezembro 2005

causa nossa?

O Doutor Vital Moreira envolveu-se nos últimos meses numa verdadeira cruzada contra o semipresidencialismo português, ao qual dá, agora, a curiosa designação de «sistema bi-representativo».
Honestamente, tenho de reconhecer que não segui, nos últimos anos, as posições do Doutor Vital nesta matéria. Ignoro se ele tem sido, desde 1982, tão moderado na apreciação dos poderes do nosso presidente, como agora parece ser. Contudo, dada a proximidade da eleição de Cavaco Silva e a necessária co-habitação com o governo do PS, estas repetidas posições parecem mais de natureza política e táctica, do que de índole doutrinal.
Seja como for, hoje, no Público (link directo indisponível), o Doutor Vital Moreira excedeu-se ao escrever que «o Presidente da República não pode provocar a demissão do primeiro-ministro por razões de perda de confiança política, visto que o primeiro-ministro só depende da confiança política da Assembleia da República».
Também eu julgava que assim era, dada a parlamentarização que o sistema vinha a sofrer desde a eleição de Mário Soares. Porém, a decisão de Jorge Sampaio de dissolver uma Assembleia com uma maioria absoluta para, objectivamente, demitir o primeiro-ministro e o governo, fez-me mudar de opinião. Ao que parece, para o Doutor Vital Moreira, do que se tratou foi apenas de restabelecer o «normal funcionamento das instituições». Ficar-lhe-ia muito grato, se me explicasse porquê.

24 dezembro 2005

um conto de natal

Entre os doze e os trinta anos de idade, a vida de Jesus é desconhecida. Os quatro Evangelhos da Bíblia não se lhe referem, os Evangelhos gnósticos contam episódios pouco credíveis, e as lendas que O dão pela Índia, antes e depois da crucifixação, a aprender com Imãns e Gurus, ou na América do Norte, a transmitir sabedoria e divindade aos índios como pretendem os mórmons, não fazem parte da História séria e realmente documentada sobre Aquele que nasceu em Nazaré, com o epíteto de Rei dos Judeus e de Filho de Deus.
Contudo, alguma documentação recentemente descoberta, datada de época desconhecida, embora sendo certamente de idade muito remota, talvez até mesmo dos primeiros cinquenta anos do século I, quando os quatro Evangelhos terão sido escritos, dá-nos uma nova e curiosa perspectiva do que poderá ter sucedido...

Essa documentação tem início após o episódio do Templo de Jerusalém, tinha Jesus doze anos de idade, onde, segundo relata S. Lucas, terá maravilhado os doutores e mestres, dialogando com eles, interrogando-os e comentado o que lhe diziam.
Querendo aprender mais, com outras gentes e outros povos, depois de muito reflectir sobre onde poderia passar alguns anos da Sua juventude, alguém Lhe terá sussurrado que a Ocidente, na longínqua Hispânia, havia um Reino, ou melhor, uma pequena província, onde habitava um povo curioso, astuto, carrancudo e neurótico, capaz de operar prodígios inimagináveis e de realizar maravilhas sem fim. Fosse como fosse, disseram-Lhe, o que Ele aí veria não teria paralelo em parte alguma dos quatro cantos do mundo, por mais que os percorresse e por melhor que os viesse a conhecer.
Este argumento convenceu o Nazareno. Jovem ainda, aos catorze anos de idade, partiu rumo a tão longínquas paragens e depois de atravessar mares revoltos, terras inóspitas, desertos infindáveis, lá alcançou o lugar de que lhe tinham falado, um ano mais tarde, aos quinze de idade.

A primeira coisa que estranhou foi que, apesar de estarem sob jugo romano, aquela terra e as suas gentes pareciam estar atrasadas no tempo. Na verdade, embora não prezasse a ocupação romana da sua terra, ninguém podia ignorar que, na generalidade, a civilização dos Césares trouxera progresso e bem-estar às populações da Judeia. Aqui parecia que nada mudara: nem estradas seguras e sem buracos, nem pontes que não caíssem ou não estivessem em risco de cair, nem banhos públicos ou privados, nem, em suma, coisa nenhuma que de proveito se visse.

Rei dos Reis, quis de imediato falar com alguém em quem pudesse reconhecer alguma igualdade. Disseram-Lhe que, em Belém o encontraria, num palácio das mil-e-uma-noites, sem nada fazer, deitado em sedas, regado de bálsamos e coberto de honrarias. Se mais estranhou o nome do destino, mais bizarro ainda lhe pareceu o príncipe de ruivos cabelos que ocupava tal palácio, que em nada se aparentava com a raça da população sobre a qual reinava. Este, vendo-O chegar e sabendo de quem se tratava, disse-Lhe: «Ilustre visitante, muito me honra receber-Te nos meus modestos aposentos. Como sabes, isto não vai nada bem. Não há pecúnia que nos aguente, nem mal que nos não suceda. De qualquer maneira, ainda que te quisesse ser útil, nunca te poderia acomodar por muito tempo. No próximo mês, do ano próximo que aí vem, outro virá para o meu lugar, para este palácio e para as minhas funções. E, pelo que tenho visto, não me auguram nada de bom. Tenho pena que assim seja, porque, certamente, teríamos conversas muito estimulantes e lançaríamos grandes debates universais. Porém, já pouco mando nisto e, muito em breve, nem esse módico mandarei. Mas, se quiseres conhecer quem verdadeiramente governa a nossa província, deverás apresentar-Te ao governador local que, embora nomeado por mim e pelo povo, obedece verdadeiramente aos Césares de Bruxelas, de quem é simultaneamente servo e senhor.»

Posto a caminho do palácio do governador, o Nazareno cruzou-se com três ilustres príncipes que se dirigiam em cima de alguns camelos para o palácio de Belém. O primeiro, a larga distância de todos os outros, magro e hirto, mastigava vorazmente um bolo de passas, pinhões e frutas secas, e, parecendo satisfeito, não estava porém sorridente, nem falava com ninguém. Interpelado pelo Nazareno sobre se ia no caminho correcto, limitou-se a retorquir: «Eu sou um pacificador. Não estou aqui, senão para ajudar o governador a governar. De maneira, que deixo essa questão ao seu cuidado e não lhe respondo, nem devo responder». Os dois que o seguiam, já velhos e acabados, invectivavam-se reciprocamente e proferiam aleivosias e enormidades um contra o outro. Já distante, o Nazareno ainda conseguiu ouvir o mais velho dos dois a dizer ao outro: «vai ser à tua conta, meu ingrato, que sempre viveste à sombra da minha majestade, que o gajo que ali vai acabará por ganhar. E à primeira!». «Isso é o que se vai ver! A mim ninguém me cala!», retorquiu-lhe o outro, numa voz que era cada vez mais longínqua.

Chegado ao palácio do governador, este, cujo nome fazia lembrar o de um antigo mestre de Atenas, em breves segundos o recebeu. E disse-lhe: «És tu aquele a quem mandei retirar das paredes do colégio público? Se és, não tenho notícias boas a dar-te. Julgo que terás direitos de autor sobre a mais vendida das obras escritas de todos os tempos e, ao fim de tantos anos, séculos e milénios, nem um só tributo, um único dracma ou sestércio entrou nos cofres do meu Reino: nem IVA, nem IRS, nem coisa nenhuma. Por acaso saberás a gravidade da afronta que cometeste? Se fosse a ti, ia de imediato falar com o nosso Sumo Sacerdote, o Rabino que simultaneamente interpreta a Tora e a Lei dos homens, para ver se chegas a um acordo e não pioras ainda mais a tua situação».

Informado sobre a quem se dirigir, o Nazareno encontrou aquele a quem competia a encomenda das sentenças aplicadas sobre os homens daquela comunidade. Vendo-o jovem e estando com os óculos enevoados, o pontifex perguntou-lhe: «Ó meu rapaz? Fizeram-te algum mal? Acaso serás capaz de encontrar, neste álbum fotográfico, aqueles que te maltrataram? Vê bem que, nesta nova versão, até a minha cara lá está! Mais isento, não poderia ter sido!» Desfeito, porém, o equívoco, o Rabino constipado trouxe o Nazareno à porta do seu palácio, dele se despedindo com verdadeira amizade e ternura.

Por qualquer outro motivo que não nos relatam os documentos, Jesus viu-se alvo da justiça daquele Reino. O tempo foi passando e, objecto de um processo público, durante muito tempo ficou à espera e nada de verdadeiramente relevante ocorreu. Sucederam-se, porém, as maldicências e as calúnias entre os informadores do Reino, e algum tempo de recolhimento preventivo. Quando, ao fim de queixas, acusações, recursos, prazos, impugnações e prescrições, se sentiu livre para partir, regressou à Sua Terra. Tinha, nesse tempo, trinta anos de idade e, daí em diante até ao último dos seus dias, passou-os a pregar contra as injustiças do Mundo.

P.S.: Este pequeno «conto de Natal», não pretende ofender as convicções ou sentimentos mais intímos dos nossos leitores, sejam eles quais forem. Por esse motivo, salientamos que, à excepção de Jesus de Nazaré, todas as restantes personagens foram, obviamente, ficcionadas.

20 dezembro 2005

cavaquizar

É quase inacreditável assistir ao erro grosseiro que a esquerda, toda a esquerda, cometeu nestas eleições presidenciais ao centrar de forma obsessiva o pleno das suas atenções no seu único adversário, o prof. Cavaco Silva.
A coisa foi inaugurada oficialmente com a apresentação da candidatura do dr. Mário Soares, submetida ao tema dominante do «passeio na Avenida» do prof. Cavaco. Avançou para formas quase grotescas com a transformação dos outros três candidatos de esquerda, Alegre, Jerónimo e Louçã, em comentadores televisivos da conferência de imprensa de apresentação da candidatura de Cavaco. Agravou-se em todos os debates televisivos onde, estivesse ou não Cavaco, ele foi sempre uma referência permanente e constante, como se os seus adversários existissem só e apenas em sua função. Tem vindo a atingir picos de hilariedade com a discussão do tema «será que podemos dormir sossegados com Cavaco?», com que os seus opositores se têm, e nos têm, deliciado. E parece que terminará com as habituais manifestações anticipadas de mau perder contra as sondagens, as coberturas televisivas, a falta ou a natureza dos debates, etc., etc., etc.
Tudo isto só poderá aceitar-se em razão de uma estratégia tacitamente concertada de fazer de Cavaco o inimigo comum da esquerda, de modo a maximizar os votos nos seus candidatos, para além das divisões existentes. Só que essa estratégia esbarra com um óbice evidente: o que os portugueses esperam do próximo Presidente é que ele seja um «salvador da pátria» e não tanto um decisor ideologicamente marcado.
Assim, fazerem incidir os holofotes sobre o professor, que, ainda por cima, detém a imagem de um ex-governante competente há muito afastado da política, logo, absolutamente irresponsável pela situação actual do país, a esquerda concedeu-lhe um invejável estatuto de supremacia. Daí até ganhar as eleições bastará, a Cavaco Silva, continuar a fazer aquilo em que é especialista: estar calado.

15 dezembro 2005

vacuidade

É a qualificação inevitável sobre o que se tem visto e ouvido aos candidatos presidenciais. Todos eles homens inteligentes, capazes e habituados, como poucos neste país, à política e ao Estado, de quem, de resto, quase sem excepção, sempre dependeram profissionalmente.
Porque razão, então, só os ouvimos a dizer vulgaridades, generalidades, enfim, banalidades, como o candidato do PS hoje reconheceu em directo na TVI? Porque motivo nenhum deles é conciso nas propostas, na exposição do que será a sua magistratura presidencial, dando, todos eles, a ideia de que não sabem ao que vêm, o que querem e o que têm para oferecer?
Pelo elementar motivo de que não podem dizer nada, porque adivinhar um desempenho presidencial é exercício mais incerto do que ler o futuro nas cartas, no horóscopo ou nas folhas de chá.
O Presidente não manda? De facto, não manda, mas até manda. O Presidente governa? Não governa, mas até pode desgovernar. O Presidente decide? Decide e não decide, depende dos dias e do que lhe reservaram as legislativas. O Presidente existe? Existe e não existe.
Seria curioso, se possível, fazer uma sondagem nacional e perguntar aos portugueses se sabem para que serve o Presidente. A maioria diria qualquer coisa como «para tomar conta de nós e dos malandros dos políticos»; uma expressiva percentagem asseguraria que «o Presidente é quem manda nisto tudo»; outros, em menor número, mas cultos e civilizados, roncariam a habitual trivialidade de que se trata de um «moderador», do «fiel da balança institucional», exercendo tão importantes trabalhos com o seu imenso prestígio pessoal, que a função reforça; poucos, ignorantes e ingratos, afirmariam que é uma espécie de «butler» do Palácio de Belém; um número ainda mais reduzido diria que serve para cortar fitas, ir a funerais do protocolo de Estado, condecorar figurões no 10 de Junho e irritar o primeiro-ministro, às vezes, o partido de onde saiu. Tal qual no tempo do venerandíssimo Almirante Thomaz e do Professor Marcello Caetano.

14 dezembro 2005

last minute

- Alegre dirige-se às mulheres (também eu).
- Soares lembra que foi Presidente da República durante dez anos. Não quer «interferir com os órgãos».

confirmação do milagre

- Alegre diz que a Igreja manteve o seu grande prestígio a seguir ao 25 de Abril.

à atencão do caa

- Alegre converteu-se: acha que há «princípios sagrados».

estado democrático

- Soares e Sousa Tavares de acordo: Portugal não é um Estado democrático.

relógios

- Soares pediu para a TVI mandar consertar o relógio, «que lhe parece não estar a funcionar bem».

ota e tgv

- Soares não conhece os dossiês da OTA. Promete que os irá ler, especialidade que sempre lhe foi reconhecida.
- Alegre leu o «artigo do Miguel» sobre a ota.

banhos públicos

- Alegre dissolverá (em água) a AR se o Governo privatizar as águas.

os principais momentos do debate (soares/alegre) - 1ª parte

- As duas referências feitas por Mário Soares ao «Presidente Cavaco Silva»;
- O anúncio do septuagésimo aniversário de Manuel Alegre na próxima semana;
- A confissão de Miguel Sousa Tavares, pouco antes do intervalo, de não estar a perceber nada do que diziam os candidatos.

liberalismo e socialismo

Um «post» de Alexandre Franco de Sousa sobre Liberalismo e Socialismo tenta estabelecer um paralelismo entre essas duas filosofias políticas.
A argumentação não deixa de ser tradicional: quer uma quer outra proporiam um mundo ideal onde a política (o Estado) não teriam existência, tentando dominar o «processo histórico» que a isso conduzisse, com governos de «comissários políticos» (a vanguarda do proletariado socialista) ou com «administradores e burocratas» (os liberais) no lugar de políticos sabedores do que é a coisa pública.
Eu poderia alongar-me na contra-argumentação e aprofundá-la convenientemente. Dizer que, para o liberalismo clássico, a política e o Estado existem, embora não sejam a mesma coisa; que esse é um erro tipicamente totalitário, que submete tudo ao Estado, primeiro a política e o seu universo humano, depois a sociedade e o indivíduo; que as formas de organização do Estado não foram sempre iguais à do modelo contemporâneo; que mesmo este último teve e tem tipos diferentes; que é por o liberalismo desconfiar da política e do Estado (porque reconhece as suas existências e, pelo menos quanto à primeira, a sua inevitável perpetuidade) que quer delimitar as competências e os poderes de quem por lá anda; que é por serem profundamente realistas em relação ao género humano, que os liberais desconfiam de quem os governa e de quem os quer governar; que a ideia de liberdade se traduz, para o liberalismo clássico, na garantia dos direitos individuais e que estes podem ser assegurados por um contrato social estabelecido entre um número maior ou menor de homens; que o Estado foi o modelo de contrato social assumido in illo tempore sob determinadas condições; que essas condições têm sido unilateralmente modificadas sem o livre consentimento dos seus destinatários; etc, etc, etc. Por fim e em suma, que isto (e muito mais) é tão parecido com o socialismo, como o cão faz lembrar o gato, estendendo-se as similitudes ao bom e conhecido relacionamento que existe entre aquelas duas classes (não no sentido marxista) do reino animal.
Mas, por mais que replicasse, haveria sempre dois argumentos invocados para os quais não conseguiria encontrar resposta.
Um, o de que o liberalismo político assenta o seu programa de intervenção «no desmoronamento do império soviético no leste e centro da Europa». O outro, que o mesmíssimo «liberalismo político» está furiosamente em marcha, aí pelo mundo fora, a substituir políticos devotos à «causa pública», por frios e inumanos tecnocratas.
É que, por um lado, há liberais e liberalismo muito antes de qualquer guerra ocorrida no século XX. Para não irmos mais atrás, sob pena de sermos acusados de arqueologia política, poderíamos começar pela grande maioria dos jesuítas da Escolástica Tardia e continuar em frente, sem parar, até ao ano de 1989.
Por outro lado, e por mais que me esforce, não consigo ver liberais com responsabilidades governativas de primeiro plano em lado nenhum. O que vejo, de facto, são burocratas e burocracias de Estados altamente organizados para intervirem na vida dos cidadãos. Isso, desculpe lá, caro Alexandre Franco de Sousa, liberalismo não é, pelo menos como o descrevem os canhanhos dos clássicos. Será, certamente, intervencionismo e socialismo na maior parte dos casos. Nacional ou outro qualquer.

12 dezembro 2005

por um parlamentarismo português


1. Nunca existiu na Europa democrática e constitucional qualquer vestígio de presidencialismo. O máximo denominador comum entre este sistema, exclusivo, durante muito tempo, dos Estados Unidos da América, foi o semipresidencialismo francês instituído por de Gaulle na fundação da V República, operada pelo seu regresso ao poder, pela Constituição de 1958 e pela reforma plebiscitária de 1962. Esta última acentuou os poderes presidenciais e a legitimidade do Chefe de Estado, que passou a ser eleito por sufrágio universal directo, por maioria absoluta em duas voltas.

2. O sistema semipresidencialista português criado pela Constituição de 1976, ainda hoje em vigor, não representa qualquer tradição democrática de governo nacional, antes foi uma forma de, ao tempo, se conseguir um «pacto de regime» entre o poder militar (dominante) e o poder civil de expressão partidária: a Chefia de Estado militar tutelaria o governo dos partidos.

3. Apesar das revisões do texto original, principalmente a primeira de 1982, a nossa Constituição mantém em vigor o sistema semipresidencialista, mesmo que levemente atenuado face ao originário protagonismo presidencial. Mas, ainda na demissão do governo de Santana Lopes (e abstraiamo-nos dos protagonistas em causa), se confirmou que, em Portugal, o Presidente da República tem poderes políticos efectivos, e que a legitimidade do governo assenta simultaneamente na sua vontade e na da Assembleia da República. Esta dupla dependência governamental é o traço fundamental do semipresidencialismo.

4. Qualquer reforma do sistema de governo português só poderá seguir no sentido do esvaziamento dos poderes presidenciais e no reforço da componente parlamentar. Essa é a tradição europeia, foi sempre a portuguesa enquanto tivemos regimes democráticos e constitucionais, e não se vê porque motivo se haveria de caminhar em sentido inverso a este, à nossa tradição e à do Continente em que estamos inseridos. Por conseguinte, o parlamentarismo deverá ser o horizonte de qualquer reforma séria do sistema de governo português.

5. Na sua História da Inglaterra, George Macaulay Trevelyan escreveu: «na era Stuart os ingleses desenvolveram para si próprios, sem participação ou exemplo estrangeiro, um sistema de governo parlamentar, administração local, liberdade de expressão e liberdade pessoal, exactamente oposto às tendências que prevaleciam no continente, em rápida marcha para o absolutismo régio, burocracia centralizada e sujeição do indivíduo ao Estado. Enquanto os Estados Gerais de França e as Cortes de Aragão e Castela cessavam de exercer até as suas funções medievais, enquanto a vida política na Germânia se atrofiava no mosaico de insignificantes principados que constituíam o Império, a Câmara dos Comuns, sob a chefia dos squires e em aliança com os mercadores e com os juristas do Direito Comum, transformou-se a si própria no órgão governativo de uma nação moderna.»

6. A Inglaterra preparou, durante séculos, um sistema político que girasse em torno do Parlamento. Talvez o único revés sentido nesse ciclo evolutivo tenha sido a dissolução da câmara representativa, em 1653, durante a ditadura de Cromwell, o puritano revolucionário que, avesso ao absolutismo, se proclamou Lord Protector do Reino e dissolveu todas as suas instituições tradicionais de governo… A restauração dos Stuart, em 1660, com Carlos II, a Revolução Gloriosa de 1688, o Bill of Rights do ano seguinte e, sobretudo, a curiosa sucessão à coroa inglesa dos dois eleitores de Hannover, George I e II, que mal percebiam e falavam o inglês, vindo-se obrigados a socorrerem-se dos membros do Parlamento para o governo do Reino, encerraram definitivamente esse ciclo de parlamentarização do regime.

7. O parlamentarismo inglês poderá classificar-se como o referencial clássico do modelo, no qual o poder político assenta em dois pólos: o Parlamento e o Primeiro-Ministro, que podem reciprocamente provocar a dissolução ou a destituição das instituições políticas em causa. Por essa razão, o parlamentarismo britânico é também designado por «dualista».

8. Não é, por conseguinte, o único tipo deste sistema. Outro, que assenta exclusivamente no poder da Assembleia representativa, o parlamentarismo «monista», foi o que vigorou na maior parte da I República Portuguesa, na III e IV Repúblicas Francesa e na generalidade das democracias europeias continentais até à eclosão da II Guerra Mundial. Aqui, o governo depende exclusivamente da Assembleia e não tem qualquer contra-poder para se defender dos excessos da câmara. O resultado foi, como é sabido, o descrédito da instituição parlamentar, permanentemente a derrubar governos e a provocar crises políticas, dos partidos políticos e da própria democracia. Há quem diga, sem estar muito longe da verdade, que os fascismos europeus tiveram aqui a sua origem.

9. No fim da II Guerra Mundial, a Alemanha, dividida, destroçada, envergonhada e humilhada, quis dar ao mundo um exemplo de sobriedade política e seriedade governativa. E deu-o, sem dúvida, por via da sua Constituição (da RFA) de 1949, onde instituiu um novo tipo de sistema parlamentar: o parlamentarismo racionalizado. Entre outros aspectos, o que realça desta variante é a responsabilidade do Parlamento (o Bundestag) na queda do Governo em funções por sua iniciativa. Pelo artigo 67º (moção de censura construtiva) o Parlamento só pode destituir o Governo se, antes disso, tiver encontrado uma nova maioria no seu seio que sustente um novo Governo. Razão pela qual, a estabilidade governativa na Alemanha tem sido uma regra constante.

10. Em Portugal, o parlamentarismo clássico não colhe. Qualquer hipótese para nos aproximarmos do modelo inglês exigiria reformas profundas do sistema eleitoral e, em consequência, do sistema partidário, que a nossa classe política se recusa a promover. O parlamentarismo de assembleia, ou monista, carece de uma Chefia de Estado com autoridade, mas sem legitimidade, democrática, isto é, de um Rei. A única República onde subsiste com sucesso (não político, mas de desenvolvimento nacional) é em Itália. Mas, trata-se de um caso muito particular e até cómico, a merecer até uma análise própria. Não serve, porém, como resulta evidente, para Portugal.

11. Mas nada impediria que, numa futura revisão, a perda do poder presidencial de dissolução do Parlamento fosse compensada por uma nova clausula constitucional que transcrevesse o espírito (e até a letra…) do citado artigo 67º. Com estas duas modificações, verdadeiramente uma em função da outra, daríamos por findo o semipresidencialismo de Abril de 1975 e, talvez, começássemos um novo ciclo político-constitucional.

11 dezembro 2005

Marinha Grande, parte II?

30 anos de semipresidencialismo


O sistema de governo português criado pela Assembleia Constituinte de 1975 fará, no próximo ano, trinta anos de vida. Ele foi um dos modelos indicados por Maurice Duverger no seu livro de 1976, Échec au Roi, para qualificar um novo tipo de sistema que, nessa altura, pautaria a organização dos poderes constitucionais na Áustria, Islândia, Irlanda, Finlândia e em Portugal e em França. O que o distinguiria dos modelos democráticos correntes, o presidencialismo de matriz norte-americana e o parlamentarismo originário na Inglaterra, seria o facto do governo não depender exclusivamente de nenhum dos dois pólos tradicionais da sua legitimidade, o presidente e o parlamento, mas do concurso simultâneo de ambos. Na raiz dos poderes políticos do Chefe de Estado, estava a sua legitimidade democrática expressa por sufrágio universal. Duverger distinguiu, contudo, nos seis exemplos dados, os países onde esses poderes eram mais fortes, daqueles onde se encontravam mais atenuados. No primeiro caso, em primeiro lugar estava a França, cuja Constituição se tivera de adaptar às pretensões do General de Gaulle. Logo, em segundo lugar, Duverger indicou Portugal.

Ao longo deste tempo, em que a Constituição portuguesa atenuou, ainda que não substancialmente, os poderes presidenciais, tivemos três presidentes e seis mandatos. Há, dessa experiência, algumas conclusões a retirar.
Deve-se, talvez, distinguir os mandatos do primeiro presidente, o General Ramalho Eanes, dos que foram exercidos pelos dois presidentes seguintes, Mário Soares e Jorge Sampaio. Os motivos a apontar podem ser vários, mas, sobretudo, existem dois determinantes: a revisão constitucional de 1982, que limitou alguns dos poderes de presidente, e o cariz pretoriano e pouco civilista do (pelo menos) primeiro mandato do General. Existem, contudo, traços comuns e permanentes a realçar.

Em regra, o primeiro mandato é mais cordato do que o segundo. A impressão que fica é que os titulares do cargo querem assegurar a reeleição, evitando conflitos com quem governa.
Mas, também parece ser prática assente que o segundo mandato altere substancialmente a atitude do presidente para com o governo, sobretudo quando não provém da área política onde se situa: Mário Soares foi, segundo o primeiro-ministro de então, uma «força de bloqueio» da governação e Jorge Sampaio dissolveu uma Assembleia da República com uma maioria absoluta que sustentava um governo que, por força disso mesmo, caiu também.
Por outro lado, o juízo que o eleitorado faz do presidente é quase consensual: se não faz mais é porque não pode ou porque o não deixam, remetendo-o, desse modo, para uma esfera metapolítica, etérea, onde só existe virtude e o vício e a ambição de poder não penetram. Logo, a apreciação crítica democrática do exercício dos seus mandatos é praticamente inexistente.
Diga-se, ainda, que todos os presidentes sentiram a necessidade ou o apelo de, a partir de Belém, interferirem na vida política e partidária: Eanes atacou o PS e o PSD, provocando cismas internos gravíssimos, e chegou mesmo a fazer o «seu» partido, o PRD; Soares não escapa à censura de ter originado a demissão de Vítor Constâncio e Jorge Sampaio da liderança do PS, como sempre desconfiou de Guterres. Mesmo Sampaio, aparentemente mais pacato, não deixou de fazer xeque-mate a Ferro Rodrigues, levando-o à demissão do cargo de secretário-geral.

Isto significa que, tal como está desenhado o sistema de governo português, o presidente pode efectivamente perverter as regras do jogo democrático, sem ser minimamente objecto de controlo político. De facto, ele não tem atribuições constitucionais que lhe permitam o exercício da política, embora não resista a jogá-la. Lamentavelmente, não existe, neste sistema, qualquer mecanismo de controlo político das funções do presidente, embora ele possa fazê-lo quer em relação ao governo, quer em relação à Assembleia da República.

O futuro do semipresidencialismo português estará, nos próximos dez anos, nas mãos de Aníbal Cavaco Silva. A grande incógnita da política que aí vem é como será que se vai comportar politicamente o presidente, quer em relação aos governos que tutelará, quer em relação aos principais partidos políticos do regime, desde logo, o PSD, onde exercerá sempre uma influência determinante, mesmo que o não queira, e ao CDS, a quem poderá condenar ao limbo político, se assim o desejar. A ver vamos. Mas, o mais provável será continuar tudo na mesma e mantermos um modelo de governo politicamente híbrido e sem que daí resulte qualquer vantagem para o país.

10 dezembro 2005

o fim do modelo semipresidencialista português


A campanha eleitoral que começou há meia dúzia de dias já foi, contudo, suficiente para demonstrar à exaustão a falência do sistema de governo semipresidencialista português.
Não deixa de ser caricato ver e ouvir os candidatos sem saberem ao certo o que hão-de dizer e prometer aos eleitores sobre o que será a sua eventual prestação em Belém. A coisa tem uma explicação: eles mesmos não sabem o que por lá irão fazer, caso venham a ser eleitos.
Todos dizem que querem estabilizar o país, tirá-lo da crise, combater o desemprego, atacar a corrupção, levantar a moral nacional, tão em baixo nos últimos tempos. Mas, quando são confrontados com os instrumentos que (não) têm para desempenharem essas funções a partir de Belém, metem os pés pelas mãos e o ridículo torna-se deprimente: um fala na sua vasta experiência como governante, outro dos anos de vida e do seu imenso «prestígio» internacional, e todos se dizem homens sérios, empenhados, dialogantes e que querem colaborar com as medidas «corajosas» do governo. Deste ou de qualquer outro, claro está, se entretanto o que por aí anda for à vida.
O que é uma evidência, é que todos estes homens, políticos experimentados com passado de governo, não sabem ao certo o que podem fazer a partir de Belém. Por um lado, sabem que a Constituição lhes permite serem um pouco mais do que a Rainha de Inglaterra. Mas, por outro, também não ignoram que a direcção política do país compete ao governo e que, por isso, tudo quanto possam prometer aos portugueses não dependerá nunca dos seus mandatos.
Melhor evidência de que o actual sistema de partilha de poderes constitucionais está esgotado seria difícil.

estado


Assumamos uma atitude liberal perante o «Estado»: aceitemo-lo como uma instituição humana, de formação secular, gerada pelos homens para dar resposta a necessidades sentidas.
Posto isto que, no essencial, significa aceitar a origem do Estado num pacto social livremente assumido entre os homens, a atitude liberal não tem de conformar-se com aquilo que o Estado hoje é e, sobretudo, no que o foram transformando os seus responsáveis, reconheça-se, muitas vezes a pedido dos próprios cidadãos.
O Estado não foi, por outro lado, uma realidade uniforme e constante no tempo e no espaço. Foi diluído e fragmentado na Idade Média, centralizador no Renascimento e na modernidade, terrorista no absolutismo, tolerante na Revolução Industrial, programático, totalitário e intervencionista no século XX. A unificação do Reino, personificada pela «Coroa» medieval, verdadeiro antecedente do Estado moderno, iniciou um processo de centralização e de supressão de poderes civis que, com raras excepções, não tem parado de crescer. Da necessidade de uma organização comunitária que defendesse os direitos individuais, que, se preservados, naturalmente resultariam em benefício de todos, rapidamente se chegou ao conceito de «interesse público», sem rosto nem destinatário directo, cuja determinação compete a quem detém o poder, ao sabor de ideologias, carismas, personalidades, ou seja, da arbitrariedade quase absoluta. No passado, sob um mesmo território exerceram-se poderes distintos sobre os mesmos indivíduos. O sistema personalista de aplicação do direito, por exemplo, permitiu que populações cultural e civilizacionalmente muito distintas co-habitassem pacificamente no mesmo território.
Numa perspectiva liberal, o Estado é uma agência funcional, isto é, que desempenha funções delimitadas pelos direitos e pelas necessidades individuais Pode mesmo, em teoria, ser fragmentado em tantas organizações quantas as finalidades a cumprir e não carece de unidade soberana, de território próprio, ou de uma população de que aproprie e tome como sua. A sua gestão, isto é, o seu modo de exercício, também não necessita de legitimidade democrática universal, manifestada pelo sufrágio rotineiro, nem de ser desempenhado por instituições representativas. Na verdade, a titularidade dessas instituições pertence, cada vez mais, aos representantes não da colectividade (conceito indeterminado e indeterminável), mas de pequenos grupos de interesses que são, já não os partidos políticos (no sentido de associações de grupos de cidadãos), mas os seus reduzidos directórios e aparelhos.
Quando Max Weber enunciou o conceito de Estado como o exercício monopolista e legítimo da violência, estava a descrever o modelo de Estado contemporâneo sob o qual temos vivido. Não é um Estado liberal (se é que estes dois termos não encerram uma insuperável contradição), menos ainda um Estado que se preocupa com a liberdade dos cidadãos. É, apenas e só, uma organização dotada de meios de violência eficazes, que os exerce, na melhor das probabilidades, em razão daquilo que os seus titulares sucessivos interpretam como sendo o interesse público. Muitas vezes, fazem-no assumidamente como coisa sua, conforme o demonstra a História europeia do século XX.
Numa sociedade liberal, o Estado não tem que existir como detentor monopolista da decisão pública, menos ainda deverá violentar aqueles a quem deve a sua existência. E podemos bem viver sem o modelo «soberanista» com que ele se configura, em benefício das «soberanias» individuais.

09 dezembro 2005

debates

Acabaram os debates entre políticos.
A partir da campanha presidencial em curso, os debates televisivos decorrem entre os candidatos e os jornalistas. Cada qual enfrenta o seu opositor da comunicação social, frente-a-frente, «olhos-nos-olhos», que, por sua vez, se esmera em argumentar, contra-argumentar, desdizer, isto é, em tentar arrasar o adversário.
De quando em vez, é tolerada uma troca de palavras entre os políticos. Obviamente sob rigorosa vigilância e controlada pelos relógios milimétricos dos senhores jornalistas. Não vão os homens fazê-los perder tempo e perderem-se naquilo que não interessa.
A troca de olhares entre os putativos representates da nação, também não é tida por conveniente. O que tem provocado alguns esgares caricatos e torcicolos passageiros.
Na verdade, mesmo tratando-se de candidatos presidenciais, a saloiice da classe política portuguesa não tem limites.

06 dezembro 2005

descolonização

Quem seguiu ontem o interessantíssimo debate no Prós e Contras sobre o 25 de Novembro e, no fim de contas o 25 de Abril de 1974, no qual participou gente que esteve, nesse período da nossa História, de boa e de má fé, só poderá retirar uma conclusão: todos, ou quase todos, os protagonistas andaram por ali ao sabor dos acontecimentos, sem os controlar, sem os entender, sem perceberem exactamente o que estava em causa. No meio do debate, alguém (julgo ter sido o Coronel Sousa e Castro) acabou por dizer o essencial: tudo o que se passou entre aquelas duas datas teve um único objectivo: entregar as antigas colónias portuguesas, sobretudo Angola, ao domínio soviético. Quando isso sucedeu, mais precisamente em 11 de Novembro de 1975, o PREC amansou e, 15 dias depois, a contra-revolução impôs-se sem a resistência empenhada do Partido Comunista. O dr. Cunhal e mais uns tantos, entre eles, indiscutivelmente a mais nebulosa personagem do nosso século XX, o General Costa Gomes, tinham o que queria. Restava-lhes obter a garantia da permanência do PCP na legalidade. Foi a moeda de troca para evitar conflitos sérios, dada de imediato pelo Major Melo Antunes aos microfones da RTP. O resto estava tratado, com a competência funcional ao serviço da União Soviética, que sempre caracterizou o dr. Álvaro Cunhal.

05 dezembro 2005

um debate que vale por dez

Vale a pena seguir o Prós e Contras, que está a decorrer na RTP1. Apesar de debater factos ocorridos há trinta anos, já disse mais sobre o presente e o futuro de Portugal, que o debate presidencial da SIC e, provavelmente, os outros nove que se lhe seguirão.

déjà vu

É a sensação provocada pelos sociólogos, comentadores, analistas, «politicólogos» e outros «cientistas sociais» nos comentários feitos, nos últimos dias, sobre Cavaco Silva e a sua «natural incapacidade» para debates políticos e contactos humanos com o eleitorado.
Diziam o mesmo em 1985 e foi o que se viu: o homem deu «banho» aos adversários e ficou dez anos pelo Governo do país. Exactamente o mesmo período de tempo que, a partir de 2006, ficará na Presidência da República.

04 dezembro 2005

«o estado a que isto chegou»

Parece que de há uns anos para cá, talvez com o virar do milénio, os portugueses descobriram, estupefactos, o país onde vivem e, como se ouve dizê-los, «o estado a que ele chegou».
De repente, o doce rectângulo onde não sucedia nem nada de muito grave, nem nada de extraordinário apoquentou-se com a sua pequenez, com a falta de identidade, a escassez de meios e recursos, a ausência de uma ideia de futuro.

E foi subitamente que tudo isto aconteceu.

Ainda no primeiro governo do Engº Guterres vivia-se na ilusão do bem-estar e da abundância, com que a Europa e os líderes talentosos da pátria, nos haviam prendado. Ao segundo governo do Engº, os portugueses começaram a sentir algum desconforto. Mas era mais pelo ânimo do líder, ou pela falta dele, do que propriamente por sinais evidentes de uma qualquer desgraça que viesse a caminho. Não dizia o nosso primeiro-ministro que, num país que enche as praias algarvias de gente feliz e gastadora, não pode haver crise nem recessão? Pois dizia e crentes como somos, intuímos que o que fazia falta era gente nova que pusesse isto no bom caminho. No caminho do costume.

As versões sobre o que, então, se seguiu são desencontradas. Há quem diga que tudo se precipitou com a saída de mais um primeiro-ministro, que estava a levar firme o barco a bom porto. Como há quem diga, também, que o homem desandou na primeira oportunidade, para posto e serviço que lhe davam mais segurança, a si e aos seus. E que, a partir daí, o melodrama seguiu os passos habituais: uma tragédia rocambolesca e patética, antes de um pesaroso final.

Infelizmente, os portugueses são gente de futuro que não gosta de olhar para trás. Se o fizessem, talvez compreendessem que «o estado a que isto chegou» não vem de agora. Ao longo de todo o último século, que fizemos nós para merecer outro destino? Vinte e cinco anos de inomináveis trapalhadas, que nos levaram à bancarrota, ao descrédito internacional e à absoluta desatenção para com os restos do Império que sobrara de um passado colonial desastrado e desolador. Depois, restabelecida a ordem doméstica por um autocrata, que durante quarenta anos de governo só atravessou a fronteira uma única vez, ficámos «orgulhosamente sós». O orgulho, um dos sete pecados capitais, fez-nos perder as últimas parcelas do Império de forma desonrosa e sem deixarmos sequer laços que nos permitissem ligações proveitosas. Viradas as costas ao passado colonial que nos envergonhava perante a «Europa civilizada», foi para ela que erguemos os olhos e rogámos as nossas preces. E o milagre sucedeu: mesmo depois da bandalheira do PREC, das nacionalizações e das planificações, entrámos no «clube dos ricos», e recebemos massa, muita massa para gastar. Agora que praticamente se chegou ao fundo do saco, olhamos para o país e nem uma ideia, um projecto, uma migalha de estratégia para o futuro, que não seja o grande desígnio nacional do défice e fazer uma linha de comboio que nos tire rapidamente daqui para chegarmos a Madrid em pouco mais de duas horas.

Ou seja: gastámos o que não era nosso, do que é nosso gastamos mais do que produzimos e continuamos a sustentar quem não trabalha e não quer trabalhar. Como permanecemos na ilusão de que o nosso «modelo social» (ou outro qualquer) é uma coisa etérea vinda do além, e não uma conta de mercearia com «deve» e «haver».
De facto, a única surpresa que pode ainda subsistir pelo «estado a que isto chegou», foi por ter chegado só agora. Ou, se calhar, por só agora nos termos apercebido disso