30 novembro 2005

direito, lei e normatividade: uma posição liberal

I. O RAF e o João Galamba envolveram-se numa interessante polémica em torno de alguns assuntos, entre os quais eu destacaria um: a visão que o liberalismo clássico deve ter do direito e da lei, como formas ordenadoras da sociedade, ou não.
E começaria por esta última asserção, o «ou não». É que, precisamente, o liberalismo entende que o direito deve ordenar a sociedade, na justa medida em que a sociedade a ordene o direito.
O primeiro problema, salvo melhor opinião o grande problema das sociedades modernas que aspiram à liberdade, está na identificação frequente e habitual entre o «direito» e a «lei». Graças ao racionalismo moderno, a «lei» é o vértice da ordem social e deve ser aplicada sem dúvida, reserva ou contestação. Quantas vezes ouvimos respeitáveis responsáveis políticos aludir que «se está na lei, tem de se cumprir», esquecendo-se que a lei em causa é a «lei dos homens» e não a «lei de Deus» (sem sentido figurado e laico, obviamente, sem querer fazer aqui algum juízo confessional que possa derir susceptibilidades...), e que os homens tanto podem fazer leis justas ou injustas.
Argumenta-se, também, que a lei deve ser cegamente obedecida e seguida porque o legislador está legitimado, nos regimes democráticos, pelo voto popular, representando, assim, a vontade do povo soberano aquilo que ele determinar por essa via.
São dois erros flagrantes, que chocam com uma visão liberal da lei e do direitoe com aquela que é defendida por Hayek, a quem o RAF lança mão e muito bem. De algum modo, estes equívocos podem sintetizar-se na afirmação do João Galamba de que «o conceito de direito é necessariamente algo politico». Se ele poderá ter razão no plano dos factos com que hoje vivemos na maior parte das sociedades ocidentais, já a não tem no domínio dos princípios. Pelo menos dos que pertencem ao liberalismo clássico.

II. Vejamos, em primeiro lugar, qual é o conceito vulgarizado de «lei» e donde é ele originário, para percebermos aquilo que foi uma verdadeira perversão do espírito do direito e, sobretudo, do Estado de Direito.
Actualmente, a «lei» é a expressão normativa do poder soberano, supostamente legitimado pelo sufrágio universal, apenas limitado às normas constitucionais.
Ora se repararmos, a pedra de toque deste conceito é a soberania: a ideia de que o poder faz «leis» ordenadoras da sociedade, porque é soberano. Esta valoração da lei, como bem refere Hayek no seu livro «The Constitution of Liberty», descende da tradição rousseauniana da soberania popular, una, indivisível e ilimitada. Se regredirmos no tempo, veremos que a sua verdadeira paternidade se encontra no direito romano do Baixo Império, recepcionado na Europa continental a partir dos séculos XI, XII, precisamente na altura em que as monarquias começavam lentamente a tentar centralizar o poder em torno da «coroa» (conceito que historicamente precede o de «Estado»). O conceito romano de lei daquela época (século VI) era o de que a lei era a «expressão da vontade do príncipe», do imperador, ou seja do soberano.
O que as modernas sociedades submetidas a este conceito de lei, identificando-o plenamente com o de direito, fizeram foi, apenas, mudar o titular desse poder: do príncipe para um poder soberano estadual. Nesta operação não se faz aquilo que verdadeiramente deve ser a atitude liberal: questionar não propriamente quem é o titular do poder de fazer a lei, mas que limites deve esse poder conhecer.

III. Obviamente que a esta questão sempre se responderá que o liberalismo cuidou de impor esses limites, também, pela via do direito, através das Constituições políticas modernas, de que a norte-americana de 1787 terá sido a primeira e a francesa de 1791, a segunda.
Esquecem-se, porém, que se ao tempo o que estava em causa era limitar a discricionaridade do poder soberano, à medida que o tempo foi passando, as Constituições políticas dos Estados contemporâneos converteram-se em «cartas sociais», pretendendo garantir direitos tidos como fundamentais, para além dos chamados direitos fundamentais de primeira geração (o direito à vida, à liberdade de opinião, à justiça, à propriedade, etc.) e quase esqueceram o essencial: o controlo do poder político. É que, hoje em dia, graças aos direitos tidos por fundamentais de segunda e terceira geração, as Constituições quase se transformaram em programas políticos ou, pelo menos, legitimam quaisquer programas políticos de governo. Por isso mesmo, assistimos em Portugal nos últimos trinta anos, para não nos afastarmos excessivamente do nosso tempo e do nosso espaço, ao legislador que, ao abrigo do mesmo texto constitucional, legisla nacionalizações e privatizações, leis que toleram a propriedade privada e outras que a pretendem estimular, etc. Em suma: a amplitude constitucional contemporânea não limita o exercício do poder político actual, antes legitima a sua quase discricionaridade, o que corresponde, de algum modo, ao retorno do absolutismo: desta vez não nas mãos de um, mas nas de alguns.

IV. Por último, vejamos qual deverá ser, salvo melhor opinião, naturalmente, a atitude liberal perante tudo isto.
Em primeiro lugar, há que distinguir que a «lei» é uma e uma apenas, das várias formas de expressão da normatividade. Para o liberalismo existem outras que representam melhor a ordenação natural da sociedade que defendemos: o costume e a jurisprudência, que o tenha em conta. É isto que, apesar de ter vindo a perder terreno de há uns anos a esta parte, se vai praticando nos sistemas jurídicos de perfil anglo-saxónico. Mais uma vez, a razão histórica também está determinada: a Inglaterra não foi afectada pelo renascimento do direito romano justiniauneu, como foi a Europa continental.
Por outro lado, também não será de pôr de lado a ideia de que o direito legislado deverá traduzir o sentimento comum dos seus destinatários em relação à matéria que visa regular, mesmo assim, admitindo que esse sentimento comum não poderá ultrapassar nunca os limites estruturantes de uma sociedade livre. Muitas vezes, ao longo da história, o poder soberano legislou incorporando costumes locais, isto é, traduzindo por via legislativa o que tinha vindo a ser feito e sedimentado ao longo dos anos pelos indivíduos em sociedade.

V. E, aqui, reside a última questão. Para o liberalismo a sociedade ordena-se por si mesma, naturalmente, sem necessidade de intermediários. A ideia do equilíbrio natural é, no fim de contas, um sinónimo da «mão invisível» dos clássicos e do «ordinalismo» de Hayek. O intervencionismo, por definição, prejudica sempre a justa composição dos interesses por parte dos seus directos titulares e beneficiários. É por isso que, para o liberalismo, o Estado é um mero intermediário com interesses próprios, dotado de um poder de soberania com que deslealmente subverte as relações sociais. E, ressalte-se, esse interesse que o Estado detém não é, para os liberais, o «interesse público», entidade tão abstracta e de existência ainda mais duvidosa que o monstro de Loch Nesse, mas os interesses de um aparelho de poder concreto, com pessoas concretas, com necessidades, fins e objectivos próprios.

VI. A sociedade liberal baseia-se no «Government under Law». Só que, aqui, o vocábulo «law» não deverá ser traduzido por «lei», menos ainda pelo conceito corrente que ela tem, mas por «direito». E, nessa medida, se como liberais defendemos uma sociedade que se deve reger por normas jurídicas gerais e abstractas, não podemos defender que essas normas sejam outra coisa senão o resultado do «populis tacitus consensus», em vez do «sed et quod principi placuit legis habet vigorem cum lege regia, quae de imperio eius lata est, populus ei et in eum omne suum imperium et potestatem concessit», que o absolutismo francês actualizaria mais tarde sob a fórmula «qui veult le roi, si veult la loy».

29 novembro 2005

a pergunta do dia

Sobre a OTA: «onde é que entram os famosos privados que irão financiar o grosso do projecto???», do LR, no Blasfémias.
«Instintivamente, protegi a carteira...», continua o LR.
É um comentário que, provavelmente, encerra a resposta à pergunta que colocou. Infelizmente.

28 novembro 2005

liberalismo e laicidade - ii

A fim de evitar alguns equívocos, parece-me útil proceder aos seguintes «acrescentos» em relação ao meu primeiro «post» sobre este tema:

1. Quando, em 1910, se proclamou a República, estava em vigor a Carta Constitucional de 1826 que, no seu artigo 6º, dizia o seguinte: «A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Reino. Todas as outras Religiões serão permitidas aos Estrangeiros com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo».

2. Nesta altura, o Estado português declarava-se Católico Apostólico Romano, embora «tolerasse» as outras Religiões aos estrangeiros. Foi, por conseguinte, necessário torná-lo laico, isto é, neutro em relação a todas as religiões, porque ele tomava partido por uma. Foi o que se fez, nomeadamente com Constituição de 1911.

3. Actualmente, o Estado português já é laico há muito tempo. O que se pretende agora, segundo parece, é tornar a «laicidade» como religião oficial do Estado e impô-la indistintamente aos cidadãos, não tomando em consideração as suas opções pessoais, isto é, a sua liberdade.

4. Um Estado Liberal (daqueles que os liberais devem gostar), não deve ter directórios centralizados em ministérios ou noutra coisa qualquer, que imponham aos cidadãos medidas únicas e uniformes. A realidade é plural e, num Estado Liberal, essa pluralidade deve ser respeitada.

5. Um Estado liberal admitirá, como razoável, que os seus símbolos sejam afixados nos locais que lhe pertencem. Tomar atitudes de exclusão não é afirmar um Estado Liberal, mas um Estado dirigista e «ideologizado».

6. Num Estado Liberal não deve existir um organismo que centralize a direcção das escolas, sejam elas de ensino primário, secundário ou superior, que lhes imponha se as paredes das salas de aulas devem ser brancas, amarelas ou azuis.

7. Num Estado Liberal, onde o poder se deve exercer de forma desconcentrada em regiões ou Estados federados, as competências sobre o ensino nunca estão no poder central.

8. Num Estado Liberal, a gestão das escolas e a sua inserção nas comunidades onde funcionam, deve obedecer ao princípio da subsidiariedade. As decisões sobre o seu funcionamento e a forma como se ligam aos cidadãos a que se dirigem, devem ser locais, autónomas do poder central e tomadas pelos cidadãos que estão mais próximos dessas instituições: entidades representativas dos alunos e dos pais, órgãos académicos localmente eleitos e não nomeados pelo poder central, etc.

9. Tudo o mais é centralismo, planificação e socialismo. Trate-se de crucifixos ou de outra coisa qualquer.

crucifixos e «interesse público»

É sempre agradável constatarmos que, por vezes, aquilo que escrevemos origina reacções deste calibre.
Ignorando a forma e fazendo um certo esforço para tentar chegar à substância, o que aqui encontramos é o estafado argumento de que o «interesse público» deve prevalecer sobre os «interesses privados», de modo a proteger o que é de todos e que não poderá ser de ninguém em particular. No caso concreto, o direito à livre formação intelectual, moral e religiosa, que os «sinistros» crucifixos afixados nas paredes das escolas públicas ameaçariam.
Sucede que a pergunta a este tipo de argumentação é, também, sempre a mesma: em que consiste, afinal, essa coisa do «interesse público».
A resposta deu-a, há já alguns anos, Alexandre Herculano, insuspeito de qualquer vocação clerical: a sociedade é «uma criação do indivíduo, que a precedeu, que lhe estampou o seu selo, porque faça ela o que fizer, nunca poderá manifestar a sua existência senão por actos individuais, unidos ou separados. O colectivo nessas manifestações não passa de uma concepção subjectiva: não existe no mundo real» (Cartas, I, pp. 241-242).
Ou seja e por outras palavras: o interesse público deve traduzir-se na defesa dos direitos individuais e não em abstracções totalitárias de valores e objectivos colectivos, que não existem e são sempre fundamento dos totalitarismos e de intervenções arbitrárias do poder político.
No caso vertente das escolas públicas e dos crucifixos, a hipótese de um conselho directivo de uma escola, eventualmente apoiado num parecer de uma comissão de pais, tomar a decisão de manter um crucifixo numa sala de aulas, não torna o Estado português clerical, nem ofende nenhum interesse público. Pelo contrário, preserva este último, ao garantir àqueles cidadãos a concretização de uma liberdade que, citando novamente Herculano, «não perturba ou tolhe os direitos e acção de outrem ou dos outros» (Cartas, I, p. 213).

agostinho neto

«Agostinho Neto: a sacralização de um déspota», por Carlos Pacheco, hoje, no Público (link directo indisponível). Imprescindível para compreender a descolonização e para conhecer um facínora transformado em mito pela nossa «história» contemporânea.

liberalismo e laicidade

Ao invés do que uma observação linear e básica poderá sugerir, a atitude liberal perante o Estado, a religião e a laicidade não é exactamente esta de mandar retirar os crucifixos das escolas ou dos locais públicos (sustentados por dinheiro dos contribuintes), como está a acontecer agora em Portugal. Impor a mesma decisão, sem ter em conta as realidades locais das populações que as frequentam, é de uma atroz violência, a fazer lembrar o episódio francês das burkas islâmicas, ou outros mais graves de perseguições dos poderes públicos movidas por razões religiosas.
Para alguma coisa têm as escolas direcções e órgãos responsáveis. E a elas deveria caber, em face das realidades locais com que têm de lidar, a escolha de manter ou retirar os símbolos religiosos, sejam eles quais forem. Em Portugal podem existir escolas inseridas em comunidades, talvez as mais urbanas, onde a importância do cristianismo seja reduzida ou até problemática. Outras existirão, certamente, em que sucederá o inverso. Impor uma decisão igual para realidades diferentes é uma atitude tipicamente socialista, que um liberal não deverá tolerar.
Por outro lado, o argumento de que uma criança, ou um jovem, poderá ficar irremediavelmente condicionado nas suas escolhas por estar perante símbolos religiosos, é, também, um falso argumento. É fazer dos seres humanos estúpidos, negando-lhes a capacidade de, em idade própria, usarem as suas capacidades intelectuais para racional e livremente tomarem as suas opções. É, naturalmente, o começo do socialismo, impondo aos cidadãos quem pense por eles, por, supostamente, eles não o saberem fazer.
O Estado deverá ser, segundo o liberalismo, nessas e noutras matérias, efectivamente neutro. Aplicar, por via governamental, uma única decisão nesta matéria não demonstra imparcialidade. Ao impor a laicidade, o Estado não está a ser neutro, mas a tomar partido por um dos pólos da questão, desrespeitando outras opções dos cidadãos e das comunidades.
É socialismo puro e duro e, por isso, o liberalismo deverá opor-lhe resistência.

ressentimentos



Sentido com as malvadezas de Sampaio e Cavaco, o dr. Santana Lopes explicou no «Expresso» que, afinal, a sua «moeda» era boa e a que veio a seguir, má. O dr. Santana sempre foi um sentimental e, com o coração ao pé da boca, nunca deixou de revelar aos portugueses as suas emoções. Como daquela vez em que, perante uma compreensiva assistência de bombeiros voluntários, descreveu as atrocidades que os seus colegas de partido fizeram ao débil recém nascido que ele pusera no mundo e numa incubadora de sobrevivência.
Também os drs. Soares e Alegre estão ressentidos um com o outro e não conseguem entender porque motivo andam os dois ao mesmo, quando, ao longo das suas longas vidas, andaram sempre os dois no mesmo. O primeiro chora a deslealdade do segundo, a quem sempre devotara carinho político e amizade, enquanto que o segundo não esquece a traição do primeiro. E a do eng. Sócrates, claro está.
Também o dr. Ribeiro e Castro não consegue esconder o que lhe vai na alma: a deslealdade de «amplos» sectores do partido e do grupo parlamentar, que ele não percebe porque motivo não aderem estusiasticamente à sua carismática liderança.
Coisa parecida se passou ontem, no Congresso dos Juízes, entre estes e o Ministro que os deveria tutelar. Ressentido, o ilustre governante abandonou pesaroso a ingrata reunião e proclamou que a sua política iria permanecer impávida e serena perante tanta e tamanha ingratidão.
Até o dr. Miguel Cadilhe, politicamente renascido, não se tem poupado a acertar contas com o passado. Nessa sua especialidade – as contas – ele tem revelado ao país que, afinal, o feio monstro que nos devora a renda e a propriedade foi nado e criado no governo de que fez parte, e tem por pai e mãe o dr. Cavaco. A quem, de resto, comparou a um frio e hirto eucalipto, daqueles que secam tudo à sua volta e só trazem infelicidade. Se o visado fosse, por hipótese, o seu também outrora colega de governo, o Dr. Deus Pinheiro, que, por evidência, não será nunca um eucalipto, talvez o paralelismo secante fosse um campo de golfe.
Quem parece não andar ressentido com ninguém é o dr. Cavaco. Dizem as más-línguas que ele não tem sentimentos. Mentira. O que o dr. Cavaco tem são objectivos e esses raramente lhe costumam escapar. Ao contrário das outras citadas personalidades.

26 novembro 2005

pinochet, liberalismo e economia


Ao contrário do que por aí se vai dizendo, foi graças ao liberalismo económico chileno que Pinochet foi derrubado.
Não fossem as privatizações efectuadas depois do governo de Allende, as políticas de abertura comercial ao exterior e a liberdade de comércio implantada no país pelos «Chicago boys», e o Chile não se teria transformado na mais próspera economia da América do Sul, com uma redução da pobreza dos 39% para os 20% e com elevados níveis de escolaridade, coisa rara nesta região.
Sendo certo que as ditaduras e o desenvolvimento não co-habitam por muito tempo, a fortíssima classe média que o liberalismo económico gerou no Chile, exigiu o que lhe faltava: a liberdade política. Foi por isso e só por isso, pela forte pressão de uma opinião pública socialmente desenvolvida, que Pinochet se viu forçado a aceitar a realização do referendo que o afastou do poder.
Se o ditador estava consciente que ao liberalizar a economia estava a condenar o seu próprio regime, já é outra conversa. Provavelmente, como muitos outros socialistas, também Pinochet pensava que o liberalismo se esgotava no campo da Economia. Enganou-se.

25 novembro 2005

blue lounge

É o novo blogue do RAF. Leitura obrigatória.

25 de novembro, sempre!



Farto de aturar os desvarios e os desmandos dos capitalistas portugueses, o brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, Comandante supremo do COPCON, o zeloso Comando Operacional do Continente e, também, Comandante da Região Militar de Lisboa, ordenou a prisão de uns tantos exploradores do bom povo trabalhador, na noite de 13 de Dezembro de 1974.

A medida compreendia-se e era sensata. Os detidos conspiravam contra a boa ordem revolucionária e, cobardemente, sabotavam a economia nacional. Eles que, donos de fábricas, bancos e empresas, invejosos e arrogantes, não eram capazes de tolerar as oportunidades criadas pela nova ordem estabelecida e pelo regime democrático e popular instaurado. Vai daí, antes que causasse mais mossa à economia nacional, o brigadeiro engavetou-os sem apelo nem agravo. E sem que lhes fosse dito porquê, obviamente. Ao tempo, a palavra de um revolucionário ainda tinha valor. E se Otelo dizia que aqueles verdugos queriam mal à economia, ao povo e à pátria, estava o assunto encerrado, encerrando os cavalheiros em lugar conveniente.

Uns dias mais tarde, passado já o Natal e o Ano Novo, em meados do primeiro mês do ano seguinte, o governo patriótico do coronel Gonçalves iniciou, paulatina e sensatamente, como era seu timbre e feitio, uma ordeira vaga de nacionalizações. Pois, se os grandes capitalistas conspiravam contra a economia nacional, o povo e a pátria, a pátria e o povo que lhes ficasse com os bancos, as seguradoras e as empresas em geral. Assim foi feito, a bem da Nação, com os notáveis resultados de que todos ainda hoje beneficiamos.

Nesse compasso de tempo e após a tentativa golpista do errático general Spínola, o general Costa Gomes ascendera à mais alta magistratura da Nação. Estávamos a 30 de Setembro de 1974 e o velho general do binóculo enredara-se num bizarro golpismo anti-democrático, que envolvia maiorias silenciosas, touradas e apupadelas públicas ao Sr. Primeiro-Ministro Gonçalves. Coisas que não se fazem, caem mal às nações civilizadas e não se podem tolerar. Vai daí, uns meses mais tarde, nos idos do 11 de Março de 75, novo golpe. O homem não se cansava de golpear deslealmente os seus camaradas de armas que, esgotada a tolerância, lhe deram guia de marcha e o deixaram abalar para Madrid.

Estava, pois, reposta a ordem democrática e o Estado de Direito: Costa Gomes, Presidente, Vasco Gonçalves, Primeiro-Ministro e Otelo, Grande Comandante. A Salvação Pública vinha a caminho pela mão deste fascinante Comité e, para Otelo, apreciador das boas tradições, deveria ter começo no Campo Pequeno.

Assim se reuniram, de forma expedita, as condições ideais para concretizar os três «D’s» de Abril: «Democratizar», «Descolonizar» e «Desenvolver». Este último fora cumprido com a prisão do grande capital e as nacionalizações. O primeiro, asseguradíssimo pelas ilustres autoridades do Estado. Faltava «Descolonizar». Foi do que se tratou, expeditamente também, a partir daí, com os resultados que todos conhecemos. Libertado Moçambique em 25 de Junho de 75, resolvida a Guiné em 10 de Setembro, restava Angola, tornada independente dois meses depois, a 11 de Novembro.

A partir de então, misteriosamente, o empenho pessoal do Dr. Álvaro Cunhal pelo rectângulo pareceu ter esmorecido. Ainda tolerou o cerco da «Constituinte» em 12 de Novembro, onde, de resto, os senhores deputados da sua bancada tiveram um comportamento democraticamente exemplar, mas já não era a mesma coisa. Os ventos da história sopravam mais suaves. O Dr. Cunhal não estava, de facto, fadado para apparatchik regional do Império Soviético. Ele fora um dos mais fiéis intérpretes e executores do internacionalismo proletário e, um dia, o seu mérito seria reconhecido na fraternidade universal que o Grande Império instauraria na Ásia, na Europa, em África e na América. A Oceânia, onde há mais cangurus que operários, podia esperar e o nosso pequeno rectângulo era já uma insignificância na marcha socialista da humanidade.

Até que no dia 25 de Novembro de 1975, um grupo de desordeiros depôs pela violência das armas o regime e a ordem instituídos. Fascistas e golpistas ligados a Spínola (já a banhos no Rio) e ao MDLP, como Jaime Neves, Tomé Pinto, Ramalho Eanes, Vasco da Rocha Vieira e Loureiro dos Santos, depuseram as autoridades legitimamente constituídas e destruíram o sonho cubano português. Otelo bem avisara que, tivesse um pouco mais de cultura e seria o nosso Fidel de Castro. Dois dias depois foi corrido das suas altas funções, o que não deixou de ser merecida punição: para a próxima, que se aplique mais nos estudos!

Falando, agora, seriamente, é a estes e a outros homens que, faz hoje trinta anos arriscaram as suas vidas, que devemos a liberdade. Ela teria, certamente, vindo mais tarde ou mais cedo. Mas, não fossem eles, Portugal não teria escapado a um banho de sangue a que hoje ainda estaríamos a fazer contas.

Dos bonzos arvorados em pretorianos tutelares do regime, só mais tarde nos livraríamos, é certo, com a extinção do malfadado Conselho da Revolução, em 1982. Porque, os verdadeiros heróis do 25 de Novembro souberam honradamente regressar aos seus postos, deixando o poder político à sociedade civil, como deve ser feito. Bem-hajam, pois, trinta anos depois.

24 novembro 2005

para que servem os jornais?


É bom ler jornais bem cedinho, logo pela manhã, ao pequeno-almoço, e saborear notícias como esta:
«Nuno Cardoso, presidente da Câmara do Porto, será acusado pelo Ministério Público, no âmbito do processo envolvendo as permutas de terreno entre a Câmara Municipal do Porto e o Futebol Clube do Porto». (Público de hoje, link directo para a notícia indisponível).
A perfeita conjugação do futuro do indicativo com uma extraordinária capacidade de antecipação histórica, fazem da nossa comunicação social um bem público de inestimável valor.

portugal contemporâneo



I. O Portugal Contemporâneo, o país que é aquele onde vivemos, é filho dilecto do liberalismo oitocentista, iniciado nos primórdios do século XIX.
Com os seus inúmeros defeitos e escassas virtudes, foi com o constitucionalismo do começo desse século que Portugal entrou na sua pobre e triste modernidade. Atrasada, convulsiva, sem princípios e valores bem definidos, invariavelmente estrangeirada, ora influenciada pela França jacobina na súplica da Constituição a Napoleão e no primeiro texto constitucional de 22, ora submissa à Inglaterra, aliada e invasora, na outorga da Carta de 26.

Se as origens não primaram pelo brilhantismo, o que se lhe seguiu não desmereceu aquele momento primordial. Pobre e atrasado, Portugal lançou-se numa guerra fratricida entre aquilo que pensara ser um mundo antigo que ia deixar e um novo que se lhe iria abrir. Os acontecimentos que se seguiram a 1834, não nos deixaram viver muito tempo essa ilusão. E o país permaneceu adiado, o desenvolvimento a marcar passo e o futuro continuou sem chegar.

Quando, já nos finais do século, mais uma vez se dividiu a opinião pública entre a Causa Real e a República, já não era verdadeiramente dessa definição que Portugal carecia. O que se seguiu ao 5 de Outubro de 1910 não foi, de resto, muito diferente do que antes existia. Mudaram-se algumas caras, outras, como sempre, limitaram-se a mudar de careta, mas, o país político ficou na mesma. Se reinava a confusão nas Cortes, passou a reinar, muito republicamente, na Assembleia. Quanto ao mais, o mesmo de sempre: balbúrdia, trapalhadas, governos de vida efémera, golpes e contra-golpes, os partidos divididos e um enorme centro político em torno do poder, sentando-se alternadamente à mesa do orçamento de Estado, como sucedera na segunda metade do século anterior e como sucede, agora, nos nossos dias.

Quando veio, de novo, a ditadura, ela não diferiu, também, por aí além, de outras que se tinham proclamado nos últimos cem anos. Os homens de 1926 queriam, como sempre querem as forças armadas, impor a ordem no caos instalado, que lhes faz espécie, turva o espírito e desalinha as ideias. Ao abrirem as portas ao lente de Coimbra de Finanças Públicas, esperavam dele que «restaurasse» a autoridade do Estado e lhes desse um futuro aos filhos, melhor do que o passado que tinham tido e o que fora dos seus pais e avós.
E a autoridade do Estado, sem dúvida, o Doutor Salazar foi capaz de repor. Ao longo dos seus quase quarenta anos de governação, muitas vezes demonstrou que quem mandava em Portugal e nos portugueses era o Estado e, no Estado, mandava ele. Com Portugal e os portugueses gratamente a obedecer.
Quando, em 68, caiu, deixou um país desinserido do mundo de então. Uma vez mais, ao lado da História e do Tempo.

O que veio de então para cá, já faz parte das nossas existências singulares. Mesmo os que ainda não eram nascidos, pertencem a esse tempo, porque esse tempo foi o tempo dos seus pais e, com eles, partilham a memória do seu passado que fazem presente. O nosso Portugal Contemporâneo não é, nem por isso, muito distinto do de há trinta, setenta, cem, duzentos anos atrás. Ajustados à época, os problemas continuam os mesmos de sempre: Portugal atrasado, Portugal na cauda da Europa, Portugal pobre, Portugal em crise orçamental, Portugal a perder tempo e o Portugal do tempo perdido.

II. O blogue a que hoje damos vida, inicia-se na véspera do aniversário de uma das mais importantes datas da refundação da República. Foi buscar o nome à obra maior de Oliveira Martins, o seu «Portugal Contemporâneo». Assumimos a falta de originalidade, mas, pelo menos, não o fizemos com a pretensão, que seria mesmo arrogância, de copiar o estilo incomparável e genial daquele que foi, em nossa opinião, o maior historiador político português de sempre. Se nos apropriámos do nome da obra foi porque ela reproduz exemplarmente o espírito daquilo que queremos aqui ir fazendo: um diário de um país distante, ou um diário distanciado deste país.

O Portugal Contemporâneo cuidará, assim, de acompanhar, à medida das disponibilidades do seu autor, o dia-a-dia do país em que nascemos, crescemos e, um dia, haveremos de morrer. Sendo um diário, não se irá circunscrever ao que vai acontecendo a cada dia que passa. Talvez prestemos mesmo até mais atenção ao que aconteceu já.
Será um diário de apontamentos políticos, politicamente descomprometido e desapaixonado. Sem agenda própria, causas ou bandeiras, e sem entusiasmos pueris. Queremos ir olhando para Portugal, para o de hoje e para o de ontem, e ir tomando algumas notas de viagem. Quem vier aqui em busca de adrenalina e de emoções fortes, de polémicas e de causas inflamadas, perde, pois, o seu tempo. Queremos fazer um blogue tranquilo, distanciado, embora tendenciosamente descomprometido.
Porque, como é da natureza das coisas, cada observador transmite o que vê, à medida do que pensa. Não pretendemos fazer nem mais nem menos do que isso mesmo.